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Caderno 11

Apresentação

 Caros colegas, é com muita satisfação que entregamos mais uma edição do nosso CADERNOS DA AMATRA IV – 11º Cadernos de Estudos sobre Processo e Direito do Trabalho, desta feita com textos sobre diferentes e instigantes assuntos de nosso interesse.


Aproveito a apresentação dessa edição, para apresentar nosso pedido de desculpas ao colega Daniel Souza de Nonohay, cujo texto resultado da palestra por ele proferida no nosso Encontro de Professores do Direito e do Processo do Trabalho não foi, por falha involuntária, incluído na edição especial do nosso Cadernos 10, relativa àquele evento.

Por esta razão, e com justiça, o artigo intitulado “RELAÇÃO DE CONSUMO COMO DISCRIMINANTE DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO”, abrilhanta a presente edição, juntamente com textos de outros colegas.

Luiz Fernando Bonn Henzel coloca em discussão a importante questão dos registros eletrônicos de jornada, recentemente disciplinada por meio de Portaria 1.510/2009, do Ministério de Estado do Trabalho e Emprego. Processo eletrônico é tema abordado no ensaio do colega Sebastião Tavares Pereira, da 12ª Região.

A colega aposentada Carmen Camino escreve acerca da interpretação e aplicação do art. 253 da Consolidação das Leis do Trabalho, enquanto Luciana Bohm Stahnke e Ricardo Carvalho Fraga reacendem a discussão acerca da competência material da Justiça do Trabalho, cinco anos após sua ampliação.

Oscar Krost, colega da 12ª Região traz interessante estudo sobre o conflito de princípios constitucionais presente no binômio interditos proibitórios e direito de greve.

José Renato Stangler faz uma crítica oportuna e um alerta necessário à indispensável proteção à saúde do trabalhador. Não apenas a saúde física, mas também psíquica. É com a saúde psíquica, e sua ofensa no chamado “assédio moral”, que se preocupa Wilson Ramos Filho, em seu artigo.

Temas interessantes que bem refletem o pensamento e a preocupação dos Juízes do Trabalho nos dias de hoje. Convidamos todos vocês a uma leitura crítica e comprometida dos textos que oferecemos como forma de socialização das nossas angústias e compromisso com nosso mister.

Luiz Antonio Colussi

Presidente da Amatra IV

 

 


RELAÇÃO DE CONSUMO COMO DISCRIMINANTE DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO

 

Daniel Souza de Nonohay

Juiz do Trabalho do TRT 4ª R – RS

 

 

São decorridos mais de quatro anos da promulgação da Emenda Constitucional nº 45/04, que ampliou significativamente a competência a Justiça do Trabalho.                A interpretação dos limites desta gerou e ainda gera profunda discussão.

Nestes quatro anos, identifiquei a existência de três grandes “grupos interpretativos” das disposições da Emenda Constitucional e, em especial, das disposições contidas nos incisos I, VI e IX do art. 114 da Constituição Federal: os conservadores, os reducionistas e os gramaticais.

Os conservadores afirmam que nada mudou. A expressão relação de emprego equivaleria à expressão relação de trabalho. Esta é a posição atualmente defendida pela Justiça Comum. Juízes estaduais dizem, por exemplo, que a expressão relação do trabalho foi realizada para deixar claro ser a Justiça do Trabalho competente para conhecer das ações versando sobre relações de emprego nas quais há e na qual não há formalização, considerada como tal a anotação da carteira do trabalho.

Já os reducionistas, igualmente temerosos de um desvirtuamento da Justiça do Trabalho, buscaram critérios para reduzir o campo de aplicação da expressão relação de trabalho. Cito o exemplo de Jorge Souto Maior. Para ele, seriam afetas à nossa competência apenas as ações decorrentes de relações de trabalho prestado de forma pessoal, com precariedade empresarial e com dependência econômica.

Aqui, faço o primeiro alerta. Não se pode fixar um critério de competência dúbio ou que dependa de dilação probatória para a sua apuração. A dificuldade na identificação da competência fere, bem compreendida, a garantia de livre acesso à Justiça (CF, art. 5º, XXXV), a garantia de razoável duração do processo (CF, art. 5º, LXXVIII) e o postulado da segurança jurídica.

Caso realizada a instrução e verificada a ausência da “precariedade empresarial”, por exemplo, não podemos julgar a ação improcedente. Não se trata da definição             de existência, ou não, de uma relação jurídica de emprego, com que estávamos acostumados. Teríamos que declarar nossa incompetência, por força do §1º do                art. 795 da CLT, e enviar os autos para o juiz competente julgar. Isto após toda a fase postulatória e toda, ou quase toda, a fase de instrução, onde exerceríamos a jurisdição sem a certeza de sermos o juízo competente para solver a demanda.

Note-se o grau de incerteza e de desperdício, de tempo e dinheiro, das partes e do Juízo, que decorre deste entendimento.

Dentre os reducionistas, acabou ganhando força a corrente que preconiza não estar sujeita à competência da Justiça do Trabalho a relação de trabalho que envolva relações de consumo.

A relação de consumo é definida pela qualidade dos seus componentes. De um lado, o consumidor, destinatário final da prestação de serviços. No outro, aquele que oferta ao mercado de consumo, ao destinatário final, seus serviços.

Não vou me aprofundar no conceito, uma vez pairarem controvérsias doutrinárias acerca da definição de destinatário final e do que seria a oferta ao mercado de consumo.

É interessante notar, contudo, que o próprio Código de Defesa do Consumidor considera sujeita às suas disposições a prestação de serviço realizada por profissional liberal, como se depreende da redação do § 4º do seu art. 14.

Enquadram-se na disposição, portanto, e a princípio, profissionais liberais, bem como outros que ofertem seus serviços ao mercado, tais como barbeiros, engraxates e motoristas de táxi.

Para melhor ilustrar os reflexos deste entendimento, vou traduzi-lo em termos práticos, focando a ação na qual se postula a responsabilização civil do advogado por defeito na prestação de serviços e a ação na qual este postula o pagamento dos seus honorários advocatícios.

Praticamente todas as turmas do nosso Tribunal Regional do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho[1] reputam a Justiça do Trabalho incompetente para apreciar estes tipos de demanda, sob o fundamento de constituírem controvérsias acerca de relações de consumo.

O entendimento tende a se pacificar. Antes que isto ocorra com a mera repetição do argumento, cumpre refletir, procurando responder a três questões:

O entendimento possui coerência sistêmica?

Em qual discriminante efetivamente se baseia?

Identificada esta discriminante, está ela de acordo com a disposição contida no art. 114 da Constituição Federal?

O que ocorre com as ações que hoje automaticamente enviamos para a Justiça Comum? Elas são recebidas, processadas e julgadas[2] não como relações reguladas pelo Código de Defesa do Consumidor, mas sim pelo Estatuto do Advogado e pelo Código Civil. A prescrição a elas aplicável, por exemplo, seria a do art. 206, § 5º, inciso II, do Código Civil, e não a prevista no art. 27 do Código de Defesa do Consumidor.

E por que, então, estas ações não retornam. Por que os juízes estaduais, majoritariamente, não declaram sua incompetência em razão da matéria e ou suscitam o conflito negativo de competência?

Porque entendem existir uma relação civil entre o cliente e seu advogado.           Em vista deste argumento e com base no entendimento conservador anteriormente referido, concluem ser competentes para apreciar a demanda e não a “Justiça da Relação de Emprego”.

Tal posição fundamentou, por exemplo, a edição da Súmula nº 363[3], em 03 de novembro de 2008, pelo Superior Tribunal de Justiça.

Onde ouvimos argumento igual? No período de definição da competência            para julgar as ações por dano moral nascidas no âmbito de uma relação de emprego.               A Justiça Estadual dizia que tais lides versavam sobre uma relação de natureza civil. E o que nós dizíamos? É desimportante o diploma legal utilizado para solver a lide. O critério de definição fixa-se na origem da controvérsia.

A simples aplicação das disposições contidas no Código Civil redunda em critério para fixação da competência? Óbvio que não.

Nós já analisamos em conjunto, portanto, e refutamos o argumento atualmente empregado pela Justiça Comum para definir sua competência.

Tanto é assim, que hoje nos consideramos competentes para conhecer de ações versando sobre alegação de dano da fase pré-contratual[4], ou seja, quando sequer relação de trabalho existiu.

Resumindo, o fundamento pelo qual mandamos os processos para a Justiça Comum é por eles refutado. O argumento pelo qual eles mantêm lá estas ações já foi por nós superado.

Vejam a ciranda jurídica, o torvelinho de entendimentos a que submetemos as partes.

A busca do critério de competência estabelecido no inciso I do art. 114 da Constituição Federal deve ser objetiva e desapaixonada.

Este critério não se dá quanto à qualificação das partes, conforme dispunha o art. 114 da Constituição Federal em sua antiga redação (trabalhadores e empregadores)[5].

Não se dá, obviamente, quanto ao valor da causa.

Não se dá, também, como incorretamente entende a 7ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho, quanto à natureza da pretensão formulada pelo autor. Caso a pretensão seja de cobrança de honorários, defendem que a competência seria da Justiça do Trabalho. Caso a pretensão seja de indenização, ou outra aduzida pelo cliente contra o advogado, a competência seria da Justiça Comum.

A relação de fato da qual se originam as demandas, assim como a matéria a ser discutida será a mesma, ou seja, se houve ou não a prestação de serviços, as qualidades e os defeitos desta prestação, os valores devidos em virtude dela, etc. O entendimento acarreta graves incongruências. Impõe, por exemplo, a tramitação de processos em ramos diversos do Poder Judiciário, um versando sobre a cobrança de honorários e outro sobre a ação de indenização. Sujeita as partes a atuarem em ambos, observando ritos totalmente diferentes e com o grave risco de contradição lógica entre os julgados[6]. Não encontra hipótese razoável, ainda, para o tratamento da reconvenção neste entendimento.

E não se dá, por fim, pela espécie de norma, e consequente conceituação dela decorrente, utilizada para solver a lide. Esta é, efetivamente, a discriminante de competência utilizada pela posição atualmente majoritária, que nos reputa incompetentes para conhecer de ações versando sobre relações de consumo.

Tal critério leva-nos a contradições e becos sem saída. Exemplifico com a suposição de um advogado contratado e remunerado por imobiliária, que oferta serviços extrajudiciais de assessoramento jurídico a sua carteira de clientes. No caso do advento de lide entre a imobiliária e o advogado, não pode ela ser considerada destinatária final e, por consequência, não há relação de consumo. De quem seria a competência para apreciar esta ação? Nossa? Julgaríamos este processo, mas não o do jardineiro, que presta serviços habituais a diversas residências no correr do mês? Ou seja, a profissional humilde, que oferta seus serviços ao mercado e os presta a destinatário final?

Friso que, nos julgados atuais, sequer há a efetiva análise dos elementos componentes da relação discutida em juízo a fim de ser apurada a efetiva existência de uma relação de consumo.

E qual, enfim, é o critério legal?

Ele se baseia na espécie de relação de fato da qual emerge a controvérsia.

Este é o único critério legal.

A relação de trabalho (relação de fato) pode derivar em relações jurídicas diversas e concomitantes, reguladas por diversos diplomas legais, tais como a Consolidação das Leis do Trabalho, o Código Civil e o CDC.

A relação entre o representado e seu procurador, por exemplo, é regulada pelo Estatuto do Advogado, mas, também é, em caso de defeito na prestação de serviço (dever de indenizar – perda de uma chance), pelo Código Civil. A competência  não pode ser alterada de acordo com a norma que utilizamos para solver esta controvérsia.

Não foi outra a conclusão a que chegaram os participantes da 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, realizada em novembro de 2007, por iniciativa do Tribunal Superior do Trabalho, da ANAMATRA, da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENAMAT) e do Conselho Nacional das Escolas de Magistratura do Trabalho (CONEMATRA), nos seus Enunciados 23[7] e 64[8].

Ao lado destes elementos técnicos que referi, existe um motivo de natureza material, e preponderante, justificador da adoção da posição interpretativa que reputo como gramatical.

Ela insere a Justiça do Trabalho como elemento regulador do cerne da cadeia produtiva. Toda a produção de riqueza, direta ou indiretamente, decorre do trabalho humano. Isso se dá mesmo quando da especulação financeira.

E por que almejaríamos assumir esta posição?

Pois ela permitiria que a Justiça do Trabalho irradiasse, no meio econômico, os valores, princípios e postulados que decorrem e justificam a sua condição de Justiça Social.

Ela permitiria, na análise de lides envolvendo o trabalho humano e pessoal, a consideração do homem e de sua dignidade em ponderação com uma realidade na qual o capital prevalece como voz praticamente incontrastada.

Quem, senão a Justiça do Trabalho, é capaz de identificar, em determinada relação, a figura do hipossuficiente, seja ela o prestador de serviços ou o destinatário da prestação de serviços.

Quem, senão a Justiça do Trabalho, é capaz de identificar a equivalência e equiparação entre as partes componentes de determinada relação e a elas aplicar tratamento isonômico?

O momento para a realização desta inserção é agora e está se extinguindo.               Não haverá outro. Nunca mais teremos a oportunidade de assumir o papel sugerido por nossa designação, e de apreciar todas as controvérsias decorrentes do trabalho humano e pessoal.

A oportunidade de dar-se a um ramo do Poder Judiciário, de cunho eminentemente social, tal abrangência e importância é única na história ocidental. Sua concretização depende exclusivamente da nossa atuação.


[1] Segunda, Terceira, Quarta, Quinta e Oitava Turmas.

[2] Majoritariamente.

[3] Compete à Justiça estadual processar e julgar a ação de cobrança ajuizada por profissional liberal contra cliente.

[4] E pós-contratual, quando a relação de emprego já está extinta.

[5] “Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas.”

[6] Uma sentença definindo que a prestação de serviços foi hígida, e, consequentemente, como devida a integralidade dos honorários respectivos e outra definindo que foi falha impondo a responsabilidade de indenizar ao profissional.

[7] “Enunciado 23. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS – AUSÊNCIA DE RELAÇÃO DE CONSUMO –              A Justiça do Trabalho é competente para julgar ações de cobrança de honorários advocatícios, desde              que ajuizada por advogado na condição de pessoa natural, eis que o labor do advogado não é prestado em relação de consumo, em virtude de lei e de particularidades próprias, e ainda que o fosse, porque a relação consumeirista não afasta, por si só, o conceito de trabalho abarcado pelo art. 114 da CF.

[8] “Enunciado 64. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO – PRESTAÇÃO DE SERVIÇO POR PESSOA FÍSICA – RELAÇÃO DE CONSUMO SUBJACENTE – IRRELEVÂNCIA – Havendo prestação de serviços por pessoa física a outrem, seja a que título for, há relação de trabalho incidindo a competência da Justiça do Trabalho para os litígios dela oriundos (CF, art. 114, I), não importando qual o direito material que será utilizado na solução da lide (CLT, CDC, CC etc).”

 

 


A PROVA DA JORNADA DE TRABALHO  ATRAVÉS DO DOCUMENTO ELETRÔNICO

 

Luiz Fernando Bonn Henzel

Juiz do Trabalho no TRT 4ª R – RS

Professor de Pós-Graduação

Especialista em EAD

Master in Business Administration

Mestre em Poder Judiciário

Doutorando em Direito Social pela UCLM/Espanha

 

 

SUMÁRIO: Introdução; 1. O uso da via eletrônica na prática de atos processuais;              2. O Documento eletrônico; 3. A Prova dos registros de horário pelo meio eletrônico;           Conclusão; Referências Bibliográficas.

 

INTRODUÇÃO

O art. 74, § 2º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), determina ser obrigatória a manutenção dos registros dos horários de entrada e saída dos trabalhadores para aqueles empregadores com de dez empregados, facultando para tal fim, a adoção do meio de registro manual, mecânico ou eletrônico.

Pouco tem sido debatido a questão do meio de prova ao se tratar de registros eletrônicos da jornada. Comumente as empresas, quando instadas em juízo a comprovar a jornada trabalhada pelos seus empregados, juntam aos autos os espelhos do ponto eletrônico, ou seja, os impressos em papel onde constam os dados registrados por meio eletrônico.

O que se pretende debater no presente estudo se refere justamente ao meio hábil de prova de tais registros eletrônicos cuja manutenção é determinada pela CLT.

A toda evidência a evolução tecnológica trouxe inovações em ritmo acelerado ao meio processual, estando em vias de implantação o processo judicial eletrônico, ou seja, sem a utilização do meio papel, sob forma totalmente virtual em arquivos digitais armazenados bancos de dados.

A pergunta a que se propõe o presente estudo responder é justamente qual o meio de prova hábil para trazer ao processo os dados dos registros de entrada e saída dos empregados do trabalho quando a empresa adota o sistema eletrônico de registro de ponto.

Até então pouco debatido o assunto, a juntada dos impressos em papel dos registros eletrônicos de jornada tem sido aceito como meio de prova sem maiores dificuldades. No entanto, também é verdadeira a afirmativa de que cada vez mais, tais documentos são impugnados no seu conteúdo pelo trabalhador. Frequente a alegação de fraude e não representatividade da realidade fática de tais registros, ante a fácil manipulação de seus dados por softwares de fácil e amplo acesso.

Preconiza-se, portanto, que seja repensado o tema.

As mídias portáteis possibilitam o transporte de banco de dados e sua fácil visualização no conteúdo original, inclusive para fins de verificação da alteração do seu conteúdo. Não mais existe razão para que o banco de dados dos registros dos horários do empregado continue sendo trazido aos autos do processo pelo meio impresso em papel, documento de produção unilateral pelo empregador, não original, já que não é aquele produzido pelo empregado, cuja forma foi o meio eletrônico.

Para tal fim, necessários alguns comentários sobre o tema, tais como, o conceito de documento eletrônico, seus requisitos de validade e o adequado meio de prova do seu conteúdo.

1. DO USO DA VIA ELETRÔNICA NA PRÁTICA DE ATOS PROCESSUAIS

A atividade forense mais do que qualquer outro serviço público precisa ser documentada a fim de que os atos processuais sejam devidamente registrados, permitindo, assim, que deles se tenha conhecimento (publicidade), e seja possível, sempre, a consulta do verdadeiro conteúdo (segurança).

Nos dias de hoje, diante da alta tecnologia eletrônica, para fins de desburocratização e consequente simplificação e agilização do serviço forense, tem-se a imperiosa necessidade da informatização do serviço judicial.

Esclarece Walter Nunes Silva Junior[1]:

 

A prática dos atos processuais pela via eletrônica é imprescindível para que haja a simplificação, otimização e agilização do processo. Com efeito, em pesquisa feita sob a coordenação da Ministra do Supremo Tribunal Federal Ellen Gracie, revelou-se que 70% do tempo de tramitação do processo, é tempo de cartório, é tempo de tramitação burocrática, é tempo onde se pode de maneira muito eficiente encurtar essa tramitação utilizando os recursos já disponibilizados pela informática. A informatização, em verdade, apresenta-se como o instrumento indispensável para a desburocratização do trâmite processual, mediante a eliminação de diversos atos manuais.

 

Cândido Rangel Dinamarco[2] falando sobre esse novo modo de transmissão de petições e documentos, ao tratar da segurança processual, leciona:

 

[…] na premissa de que todo o sistema processual gira em torno de certezas, probabilidades e riscos, não sendo sensato o obcecado apego ao ideal de segurança nos atos processuais. Nada é absolutamente certo, neste mundo de seres falíveis. Cumpre ao legislador a definição de linhas de equilíbrio entre o seguro e o provável, com a consciência dos riscos que se assumem e o cuidado de predispor meios capazes de corrigir possíveis erros ou desvios.

 

Não obstante doutrinadores, como o acima citado, apregoem que deve ser deixado de lado o extremo apego ao requisito da segurança, tem-se que sequer tal ilação se faz necessária.

O meio eletrônico se demonstra cada vez mais seguro que o próprio meio papel. Não podemos esquecer que toda a economia do País, senão do planeta, está virtualmente documentada nos bancos de dados do sistema financeiro. O manuseio do papel moeda é algo raro nos negócios jurídicos. Cada vez mais é utilizado o meio virtual, onde a via eletrônica das operações é a regra no sistema financeiro mundial.

A Lei nº 11.419 de 19 de dezembro de 2006 autoriza e regula amplamente a utilização dos meios eletrônicos no âmbito processual introduzindo profundas alterações no Código de Processo Civil (CPC), criando o processo totalmente eletrônico já denominado de processo virtual.

Referido estatuto legal, através do seu art. 2º, inseriu o parágrafo único ao                art. 154 do CPC, determinando que “Os tribunais, no âmbito da respectiva jurisdição, poderão disciplinar a prática e a comunicação oficial dos atos processuais por meios eletrônicos, atendidos os requisitos de autenticidade, integridade, validade jurídica e interoperabilidade da Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira-ICP – Brasil”, autorizando, deste modo, a utilização do meio eletrônico para a prática de atos do processo.

Ao que interessa ao presente estudo, a inovação legislativa, consagra a validade do documento eletrônico como meio de prova e seus requisitos de validade, razão de ser necessária a releitura dos termos do § 2º do art. 74 da CLT, no que autoriza               a adoção do meio eletrônico para o registro de jornada de trabalho no âmbito da relação de emprego.

2. O DOCUMENTO ELETRÔNICO

Segundo Moacir Amaral do Santos[3] a palavra documento vem do latim documentum, do verbo doceo, que significa ensinar, mostrar, indicar. Ou seja, “significa uma coisa que tem em si a virtude de fazer conhecer outra coisa”.

Greco Filho[4] esclarece que “documento liga-se a idéia de papel escrito. Contudo, não apenas os papéis escritos são documentos”. “Documento é todo objeto do qual se extraem fatos em virtude da existência de símbolos, ou sinais gráficos, mecânicos, eletromagnéticos etc.”

Em tal sentido, o que caracteriza algo como documento não é seu meio de visualização ou a forma de concreção no mundo real, ou ainda, a espécie de símbolos ou o meio de armazenagem utilizado para transmitir o fato ou ideia (símbolos sobre um papel transmitindo alguma informação é um documento tanto quanto, símbolos entalhados em uma pedra). Nesse sentido a gravação de áudio ou vídeo em uma fita magnética, um filme fotográfico, ou ainda, um DVD onde restam armazenadas informações por meio digital, são indubitavelmente, documentos.

Edilberto Barbosa Clementino[5], alicerçado na doutrina de Moacir Amaral dos Santos, aponta com clareza aspectos relevantes no tocante ao documento eletrônico. Segundo o autor, são elementos de um documento: a) seu autor; b) maneira ou meio de exteriorização; c) conteúdo.

Quanto ao autor o documento pode ser: a) público quando produzido por quem esteja no exercício de uma função pública que o autorize a formá-lo, como o tabelião; b) privado quando produzido por um particular ou mesmo por oficial público que não esteja agindo nessa qualidade; c) autótrofo quando há identidade entre o autor do documento e o autor do fato documentado, tal como ocorre de ordinário com os escritos particulares; d) heterógrafo quando o autor do documento é terceiro em relação ao fato documentado, como ocorre comumente nos documentos públicos.

Segundo o doutrinador, os documentos quanto ao meio de sua formação, dividem-se em: a) escritos quando comuns, aos quais normalmente se refere a lei, de onde advém a sinonímia entre documento, escritura, escrito; b) gráficos quando a ideia ou o fato são representados por sinais gráficos diversos da escrita: desenhos, pinturas, plantas, carta topográficas, etc; c) diretos quando o fato representado se transmite diretamente para a coisa representativa – fotografia, fonográfica, cinematografia,              etc; d) indiretos quando o fato representado se transmite através do sujeito do fato representado.

Os documentos podem ser: a) formais quando possuem eficácia de valer como prova do fato; b) não formais quando sua forma é livre, donde o fato declarado deve ser provado pelos meios admissíveis de prova em direito.

Em se tratando de processo, os documentos têm dupla importância: a) registram os atos do processo; b) registram fatos alegados para a prova em juízo. Documentos processuais são aqueles, portanto, que dizem respeito aos atos processuais bem como as provas que instruem o processo.

Ensina Hely Lopes Meirelles[6]:

 

[…] o Princípio da Segurança Jurídica é uma das vigas mestras da ordem jurídica, devendo ser entendido como Princípio da boa-fé dos administrados ou da proteção da confiança. Encontra-se indissociavelmente ligado a necessidade estabilidade das relações jurídicas, inclusive naquelas que apresentam vícios de ilegalidade na sua origem.

Tal princípio tem duas facetas distintas, mas correlatas. De um lado, quando se fala em Segurança Jurídica tem-se em perspectiva a necessidade de que as relações jurídicas tendam à estabilidade. Em certos casos prefere-se que certos vícios que maculam determinados atos jurídicos acabem sendo “perdoados” em nome de um bem maior que é a eliminação de situações que possam tumultuar a tranqüilidade social.

O enfoque que se pretende dar aqui é no sentido de destacar que as causas em tramitação pela via Virtual devem trazer a mesma certeza quanto à Autenticidade e à Integridade dos Documentos eletronicamente produzidos, bem como garantir sua Proteção contra o acesso indiscriminado, consoante ocorre no processo tradicional.

 

Na linha do citado autor, portanto, tal como para a utilização e o desenvolvimento do Processo Judicial por meio eletrônico, no que interessa ao presente estudo, para a prova do ato do registro do horário de trabalho em processo judicial, o meio eletrônico a que se refere o art. 74 da CLT deve atender a três aspectos, a saber:                 a) Garantia de autenticidade; b) Integridade; c) Proteção contra o acesso não Autorizado.

Tais requisitos são necessários para que se obtenha a segurança jurídica necessária na identificação dos elementos dos documentos ao início referidos, ou seja, para que seja de modo eficaz identificado, em especial, a sua autoria e integridade de conteúdo.

A Lei nº 11.419 de 19 de dezembro de 2006, que trata da informatização do processo judicial, autoriza o uso e estabelece os parâmetros necessários ao uso do documento eletrônico e sua segurança (Garantia de autenticidade, integridade e proteção contra o acesso não autorizado):

 

Art. 1º O uso de meio eletrônico na tramitação de processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças processuais será admitido nos termos desta Lei.

§ 1º Aplica-se o disposto nesta Lei, indistintamente, aos processos civil, penal e trabalhista, bem como aos juizados especiais, em qualquer grau de jurisdição.

§ 2º Para o disposto nesta Lei, considera-se:

I – meio eletrônico qualquer forma de armazenamento ou tráfego de documentos e arquivos digitais; (grifei)

Desta feita, o uso do meio eletrônico para a prática dos atos processuais, em especial aquele objeto do presente estudo – a prova da jornada de trabalho – se encontra em perfeita consonância com a legislação vigente e os requisitos de segurança jurídica, e, portanto, aplicável por expressa disposição legal contida no  art. 1º, § 1º da Lei nº 11.419 de 19 de dezembro de 2006, ao procedimento judicial trabalhista, objeto do presente estudo.

3. A PROVA DOS REGISTROS DE HORÁRIO PELO MEIO ELETRÔNICO

O art. 74, § 2º da CLT diferencia expressamente os meios de registro de jornada como manual, mecânico ou eletrônico, e, portanto, não mais comporta acolher-se que a prova do registro efetuado pelo meio eletrônico seja realizada judicialmente através de documentos impressos.

O art. 1º, § 2º, inciso I da Lei nº 11.419 de 19 de dezembro de 2006, define como meio eletrônico qualquer forma de armazenamento ou tráfego de documentos e arquivos digitais, sendo certo que o meio impresso em papel perde suas características de “forma de armazenamento ou tráfego” de arquivos digitais. Deixa tal documento de ser um arquivo digital, e, portanto, deixa de ser o documento cuja autoria é do empregado e em face dele pode ser invocado como prova da jornada, revelando, assim, mero impresso de produção unilateral da própria parte que o invoca, não servindo como meio de prova oponível em face da parte adversa que não o produziu se esta não lhe admitir o conteúdo.

Nesse sentido, cumpre observar que a apresentação pelo empregador de espelhos impressos em papel dos registros do ponto eletrônico com a assinatura do empregado, também de nenhum efeito probatório é possível dotá-lo, pois a jurisprudência é pacífica no sentido de que o ponto firmado em uma mesma assentada pelo empregado é documento nulo.

Conforme anteriormente exposto, o registro da jornada pelo meio eletrônico pode ser assim classificado: a) quanto ao autor como documento privado (produzido por um particular) e autótrofo (identidade entre o autor do documento e o autor            do fato documentado); b) quanto ao meio de sua formação em documento direto (quando o fato representado se transmite diretamente para a coisa representativa);            c) quanto ao conteúdo como documento formal (possui eficácia de valer como prova do fato).

Nesse sentido já decidiu o Superior Tribunal do Trabalho, reconhecendo se tratar o registro de horário em documento formal, ao editar a Súmula nº 338, a qual reconhece a inversão do ônus da prova quando não exibidos pelo empregador que detém o dever da sua guarda:

 

Súmula nº 338 do TST: JORNADA DE TRABALHO – REGISTRO – ÔNUS DA PROVA (incorporadas as Orientações Jurisprudenciais nos 234 e 306 da SBDI-1) – Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005:

I – É ônus do empregador que conta com mais de 10 (dez) empregados            o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, § 2º, da CLT. A não-apresentação injustificada dos controles de freqüência gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por prova em contrário. (ex-Súmula nº 338 – alterada pela Res. 121/2003, DJ 21.11.2003)

II – A presunção de veracidade da jornada de trabalho, ainda que prevista em instrumento normativo, pode ser elidida por prova em contrário.                      (ex-OJ nº 234 da SBDI-1 – inserida em 20.06.2001)

III – Os cartões de ponto que demonstram horários de entrada e saída uniformes são inválidos como meio de prova, invertendo-se o ônus da prova, relativo às horas extras, que passa a ser do empregador, prevalecendo a jornada da inicial se dele não se desincumbir. (ex-OJ nº 306 da SBDI-1-DJ 11.08.2003)

 

O impresso do espelho do ponto em meio papel equipara-se no caso a fotografia, ou seja, a imagem do original, mas não o original. Tal como na hipótese da prova produzida por meio de fotografia, se esta não estiver acompanhada dos respectivos negativos (documento original), de nada valerá quando impugnado o conteúdo, o que equivale a dizer, que os impressos em papel do espelho do ponto, quando impugnados, de nada valerão quando não acompanhados do arquivo pelo meio eletrônico, ou seja, armazenado em mídia digital, nos termos do art. 1º, § 2º, inciso I da Lei nº 11.419 (CD, DVD, e outros).

Vale aqui citar, por perfeitamente aplicável à espécie, os termos dos arts. 383 e 385, § 1º do CPC, ao se tratar de documento eletrônico:

 

Art. 383. Qualquer reprodução mecânica, como a fotográfica, cinematográfica, fonográfica ou de outra espécie, faz prova dos fatos ou das coisas representadas, se aquele contra quem foi produzida lhe admitir a conformidade.

Parágrafo único. Impugnada a autenticidade da reprodução mecânica, o juiz ordenará a realização de exame pericial.

Art. 385, § 1º. Quando se tratar de fotografia, esta terá de ser acompanhada do respectivo negativo.

 

Tal determinação se reveste de perfeita lógica. A fotografia ou o impresso do banco de dados do registro do ponto, por se tratar de “imagem” do original, não permite que se verifique da adulteração do seu conteúdo, o que somente se revela possível no exame do documento original. Simples mas eficaz, a comparação entre a cópia reprográfica de um documento e seu original, quando impugnada a assinatura do autor, ou seja, não há como realizar-se a perícia grafodocumentoscópica em cópia reprográfica, pois a imagem não contém os elementos encontrados no original, principalmente, eventuais traços de adulteração.

O impresso dos dados do ponto em meio papel somente possui eficácia probatória quando não impugnado pela parte adversa. O registro do ponto eletrônico a que se refere o § 2º do art. 74 da CLT é aquele que consta armazenado no próprio software que o gerou, no seu banco de dados, sendo esse, portanto, que deve vir aos autos do processo.

Assentada a premissa de que o documento eletrônico é válido no ordenamento jurídico brasileiro, cumpre avançar para a discussão sobre o seu valor probatório.

O Código Civil, no art. 212, consagra o preceito de que havendo forma determinada para o negócio jurídico, esta será o seu meio de prova.

Ao se tratar de documento eletrônico, dada a complexidade de que se reveste tal meio de prova, necessária a segurança de sua autoria, ou seja, deve o documento eletrônico se revestir de três características essenciais já citadas: a) Garantia de autenticidade; b) Integridade; c) Proteção contra o acesso não Autorizado.

César Santolin[7] doutrina que o documento eletrônico deverá apresentar os seguintes elementos:

 

a) permita livremente a inserção dos dados ou a descrição dos fatos que se quer registrar; b) permita a identificação das partes intervenientes, de modo inequívoco, a partir de sinal ou sinais particulares; c) não possa ser adulterado sem deixar vestígios localizáveis, ao menos através de procedimentos técnicos sofisticados, assim como ocorre com o suporte cartáceo.

 

A garantia de autenticidade, integridade e proteção contra acesso não autorizado de documento eletrônico é produzida através de uma assinatura eletrônica, por emprego de criptografia com sistema de chaves assimétricas.

O ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça, Ruy Rosado de Aguiar[8],              em entrevista sobre o tema da insegurança das comunicações eletrônicas, afirmou:   “o documento eletrônico, tem que ser autêntico e para conseguir-se isso, usa-se a assinatura eletrônica, que não é uma subscrição, mas o modo de garantir que o documento é proveniente do seu autor e que seu conteúdo está íntegro”.

Nos termos da Lei nº 11.419/2006 que trata da informatização do processo judicial, o termo assinatura eletrônica se refere a identificação inequívoca do signatário do documento eletrônico:

 

Art. 1º [..]

§ 2º Para o disposto nesta Lei, considera-se:

III – assinatura eletrônica as seguintes formas de identificação inequívoca do signatário:

a) assinatura digital baseada em certificado digital emitido por Autoridade Certificadora credenciada, na forma de lei específica;

b) mediante cadastro de usuário no Poder Judiciário, conforme disciplinado pelos órgãos respectivos.

 

Nesse sentido indispensável que o documento eletrônico do registro da jornada de trabalho seja dotado de assinatura eletrônica compatível, bem como, que do banco de dados seja possível identificar o autor dos registros de forma inequívoca, seja pelo uso do código constante na tarja magnética do cartão utilizado para o registro pelo emprego, pelos caracteres gerados pelo código de barra do crachá ou cartão, ou por outros meios utilizados pelo software para o reconhecimento inequívoco.

Observa-se, outrossim, que não basta vir ao processo o arquivo digital dos registros do ponto isoladamente, eis que a garantia de integridade e contra acesso não autorizado há de ser verificada através da leitura do documento no próprio software que o gerou, de modo a ser possível verificar se este contempla com meio de segurança, a impossibilidade de adulteração dos dados sem deixar vestígios. Os requisitos de validade do documento eletrônico não se limitam, assim, ao banco de registros, mas ainda, e principalmente, ao software que o gerou, o que poderá ser apurado em perícia técnica, se necessário.

CONCLUSÃO

Em síntese, pode-se afirmar que a legislação pátria, no artigo 74 da CLT, torna obrigatório ao empregador com mais de dez empregados a manutenção de registros dos horários de entrada e saída dos empregados, facultada a adoção do meio eletrônico para tal controle.

Na forma da jurisprudência uniforme do TST, é do empregador com mais de dez empregados o ônus da prova quanto a jornada de trabalho.

Em havendo necessidade de produzir prova da jornada em juízo, o empregador que adotar o meio eletrônico para o controle da jornada, deverá produzir a referida prova pelo meio também eletrônico, ou seja, pela disponibilização ao juízo do banco de dados onde estão contidos os registros bem com do software que o gerou, pelo meio digital, através do uso de mídias portáveis (CD, DVD, etc.).

A forma impressa em papel de tais registros de horário somente terão validade se a parte litigante adversa concordar em juízo com o seu conteúdo.

A assinatura do empregado, colhida pelo empregador em espelhos impressos  do ponto eletrônico não os convalida. Tais impressos firmados não se equivalem ao cartão-ponto registrado e firmado diariamente pelo empregado, sob sua própria fiscalização do quanto lançado como registro. Em tais circunstâncias a assinatura não é contemporânea aos registros equivalendo a produção de documentos em uma mesma assentada, procedimento amplamente rechaçado pelo Judiciário.

É certo não haver norma legal expressa determinando a adoção da criptografia ou assinatura digital pelos empregadores, mas também se revela certo que o documento eletrônico para fins de prova judicial deverá atender a certos requisitos de validade. A produção de prova em processo judicial é ato processual, e por tal, em se tratando de prova eletrônica está sujeita as determinações da Lei nº 11.419/06.

O documento eletrônico apresentado ao juízo como prova da jornada, deverá ser dotado dos requisitos de garantia de autenticidade e integridade pelo uso de práticas eletrônicas disponíveis. Deverá, ainda, o documento eletrônico contar com proteção contra acesso não autorizado, permitindo a identificação segura dos intervenientes a partir de sinal ou sinais particulares, pelo uso de assinatura eletrônica identificável, bem como, revestir-se da qualidade de que não pode ser adulterado sem deixar vestígios localizáveis. Não atendidos tais requisitos, não estará o empregador produzindo prova válida dos registros de jornada pelo meio eletrônico adotado.

O documento eletrônico de comprovação da jornada, não se limita ao banco de dados dos registros de horários, mas também ao software que o gerou, de modo que eventual prova pericial possa averiguar se restam atendidos os requisitos de validade do mesmo.

Nesse sentido opinamos que embora o Juiz não possa exigir do empregador o uso de assinatura digital no ponto eletrônico, é amplo o amparo legal que possui         para exigir da parte processual, como o faz em toda e qualquer prova dos autos, a autenticidade da prova, rechaçando o documento falso.

Em eventual prova pericial, mesmo que comprovada a autoria dos registros pelo empregado e mesmo não sejam identificados rastros de adulteração no banco de dados, tal somente conduzirá a conclusão da integridade do documento eletrônico, se através do exame do banco de dados e do próprio software que o gerou, for possível concluir pela impossibilidade de adulterações sem deixar vestígios – proteção contra acesso não autorizado, atendendo assim, a tríplice exigência legal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Código Civil. Texto compilado. Lei 10.406 de 10.01.2002. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/codigos/>. Acesso em: 12 jul. 2008.

BRASIL. Código de Processo Civil. Texto compilado. Lei 5.869 de 11.01.1973. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/codigos/>. Acesso em: 12 jul. 2008.

BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. Texto compilado. Del 5.452 de 01.05.1943. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/codigos/>. Acesso em: 12 jul. 2008.

BRASIL. Lei 11.419 de 19.12.2006. Disponível em

<http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11419.htm>. Acesso em: 12 jul. 2008.

CHAVES, Luciano Athayde (Org.). Direito Processual do Trabalho – Reforma e Efetividade: Informatização do Processo. São Paulo: LTr, 2007.

CLEMENTINO, Edilberto Barbosa. Processo Judicial Eletrônico. Curitiba: Juruá. 2007.

GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1996.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

SANTOLIM, César V. M. Formação e Eficácia Probatória dos Contratos por Computador. São Paulo: Saraiva, 1995.

SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

SOUZA, Carlos A P. de. Inovação Jurisprudencial no Campo do Direito da Tecnologia da Informação. Polígrafo do Programa de Capacitação em Poder Judiciário. Inovação Jurisdicional. Rio de Janeiro: FGV, 2008.


[1] CHAVES, Luciano Athayde (Org.). Direito Processual do Trabalho – Reforma e Efetividade: Informatização do Processo. São Paulo: LTr, 2007. p. 415-429.

[2] CHAVES, Luciano Athayde (Org.). Direito Processual do Trabalho – Reforma e Efetividade: Informatização do Processo. São Paulo: LTr, 2007. p. 431.

[3] SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. São Paulo: 17. ed., Saraiva, v. 1, 1994. p. 386-387.

[4] GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. São Paulo: 11. ed., Saraiva, v. 2, 1996. p. 224.

[5] CLEMENTINO, Edilberto Barbosa. Processo Judicial Eletrônico. Curitiba: Juruá. 2007. p. 91-94.

[6] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 90.

[7] SANTOLIM, César V. M. Formação e Eficácia Probatória dos Contratos por Computador. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 3610. SOUZA, Carlos A P. de. Inovação Jurisprudencial no Campo do Direito da Tecnologia da Informação. Polígrafo do Programa de Capacitação em Poder Judiciário. Inovação Jurisdicional. Rio de Janeiro: FGV, 2008. p. 08.

[8] SOUZA, Carlos A P. de. Inovação Jurisprudencial no Campo do Direito da Tecnologia da Informação. Polígrafo do Programa de Capacitação em Poder Judiciário. Inovação Jurisdicional. Rio de Janeiro: FGV, 2008. p. 08.

 


PROCESSO ELETRÔNICO, MÁXIMA AUTOMAÇÃO, EXTRAOPERABILIDADE, IMAGINALIZAÇÃO MÍNIMA E MÁXIMO APOIO AO JUIZ: CIBERPROCESSO*

 

Sebastião Tavares Pereira

Mestre em Ciência Jurídica pela Univali/SC

Pós-graduado em Direito Processual Civil

Juiz do Trabalho aposentado do TRT 12ª R – SC

 

 

SUMÁRIO: Introdução; 1. Processo eletrônico, sistema eletrônico de processamento de ação judicial (SEPAJ) e ciberprocesso; 2. Nobert Wiener, Cibernética e Direito; 3. As técnicas de aplicação do Direito e o ciberespaço; 4. Luhmann, Direito e sistema. Diferenciação funcional, autonomia, auto e heteroreferenciabilidade. Comunicação como conceito-guia dos sistemas; 5. O princípio da máxima automação; 6. Princípio da imaginalização mínima (ou da datificação pertinente); 7. Princípio da extraoperabilidade; 8. O princípio da prioridade à função judicante (ato de julgar); Considerações Finais; Referências Bibliográficas.

 

INTRODUÇÃO

A absorção das chamadas novas tecnologias para aprimorar o instrumento de adjudicação do Direito, o processo, ocorrida na última década, é marcante. O já feito deve ser aplaudido. Os técnicos avançaram até onde lhes foi permitido e, em muitos casos, foram além da permissão legal, quando os juristas lhes solicitaram[1]. Por outro lado, por causa da velocidade da evolução tecnológica, tudo que surge de novo, já nasce obsoleto. Nesse cenário, balizas estratégicas claras são fundamentais para permitir a incorporação progressiva dos avanços tecnológicos e a otimização contínua da prestação jurisdicional.

Este artigo, escrito para os juristas, conclama-os a posicionarem-se estrategicamente em relação ao processo eletrônico[2] e ao que o legislador chamou de Sistema Eletrônico[3] de Processamento de Ações Judiciais-SEPAJ[4], no art. 8º da Lei nº 11.419/2006[5].          Está escrito pensando no processo do trabalho mas, certamente, as ideias expostas aplicam-se a qualquer SEPAJ.

A Lei nº 11.419/2006 traz as mais importantes aberturas para a incorporação efetiva da tecnologia no instrumento do processo, o SEPAJ, desde a Lei 9.800/99[6], que marcou o início do fenômeno.

Por isso, os juristas são provocados a dizerem:

I – até onde desejam a tecnologia e seu principal efeito, a automação, no processo e

II – até onde podem caminhar os tecnólogos para obter o nível de automação especificado.

Para esse exercício visionário (estratégico), os operadores do Direito, especialmente magistrados e advogados, devem I. informar-se, num nível adequado, sobre as novas tecnologias, para perceber-lhes as potencialidades e II. assumir o papel que lhes cabe de definir como é o processo que desejam com essas tecnologias. Os técnicos surpreenderão nas respostas, dadas no plano tático.

O Direito já se acostumou com a explicitação de macrodiretrizes pela via de normas principiológicas, “ […] seguindo a cartilha do construtivismo principiológico inaugurado por Ronald Dworkin[7] e absorvido pelo Direito continental constitucional europeu a partir da década de 70 do século passado, de onde se espraiou para a teoria geral do Direito”[8] [9] [10]. No caso do processo eletrônico, muitos autores[11] têm se ocupado do tema princípios, porque os conflitos de interesse gerados pelas inovações vão esbarrar em vazios normativos onde a solução será feita pelo recurso a essas normas[12].

Mas os princípios ventilados por tais autores distinguem-se dos aqui propostos, porque aqueles estão mais voltados às consequências jurídico-processuais da incorporação da tecnologia da informação ao procedimento – fenômeno que o legislador chama de “informatização do processo judicial”[13].

Os quatro princípios apontados no final deste trabalho, por outro lado, ocupam-se do perfil que – na visão do autor – os juristas deveriam pretender para um SEPAJ: máxima automação, extraoperabilidade[14], alimentação por dado em formato pertinente para a máxima automação (sempre que possível) e desenvolvimento a partir da diretriz fundamental de proporcionar o máximo apoio à atividade judicante estrita:           o ato de julgar.

Eles são comandos[15] dirigidos aos tecnólogos, como se se dissesse: “se vocês vão desenvolver um sistema processual, nós o queremos assim…”. Imbricam-se aí a ordem e a autorização e, por trivial que pareça essa explicitação dos princípios, pode-se afirmar com segurança que a criatividade dos técnicos têm sido tolhida porque ela não foi feita.

Pelas palavras utilizadas em sua enunciação, vê-se que os princípios não trazem novidades para os técnicos, salvo a determinação/autorização para que apliquem, na construção de um SEPAJ, o que já dominam. Ou seja, ponham o estado da arte das novas tecnologias a serviço do processo.

Mas esses princípios tocam em questões altamente sensíveis para os juristas e a interpretação dos artigos da Lei nº 11.419/2006 ganhará contornos novos se eles forem enunciados e adotados pelos operadores do Direito.

Um sistema processual concebido sob os princípios aqui explicitados avançará, certamente, em conhecimento e inteligência. Um processo suportado por essa ferramenta será mais apto a I – instrumentalizar o Poder Judiciário para, usando eficazmente os meios tecnológicos disponíveis para acelerar a tramitação processual, responder aos jurisdicionados em tempo razoável, II – aliviar o trabalho de advogados, juízes e servidores, deixando-lhes para fazer exatamente aquilo que somente eles podem fazer e III – concretizar o comando constitucional do amplo acesso à Justiça, na acepção mais abrangente. Deborah L. Rhode, reportando-se à realidade norte-americana de forma que para o Brasil é inteiramente pertinente, diz que a igual proteção da lei “[…] é um dos princípios legais mais orgulhosamente proclamado e mais largamente violado da América. Ele embeleza a entrada das cortes, as ocasiões cerimoniais, e as decisões constitucionais. Mas […] milhões de americanos carecem de qualquer acesso à justiça […]”[16]. [tradução livre]

Nesse sentido, portanto, advogados e juízes têm muito a demandar (e autorizar!) à área de tecnologia. É chegado o momento de esses atores processuais, entendendo o alcance e as possibilidades da tecnologia, dizerem como é o sistema processual que almejam, com o uso do qual farão o que de fato lhes deve incumbir e deixarão aos instrumentos tecnológicos tudo aquilo que possa, com segurança, rapidez e eficácia, ser executado por estes.

Não há aqui, marque-se bem, a pretensão de sugerir sistemas automáticos de decisão, nos moldes sonhados pelos teóricos da Informática Jurídica nas décadas de 70 e 80[17]. Ao contrário, as propostas estão calcadas nas possibilidades reais e atuais das chamadas novas tecnologias e das necessidades prementes e perceptíveis do processo.

1. PROCESSO ELETRÔNICO, SISTEMA ELETRÔNICO DE PROCESSAMENTO DE AÇÃO JUDICIAL (SEPAJ) E CIBERPROCESSO

Repita-se que “justiça atrasada é justiça negada”[18] e que o inciso LXXVIII[19] da Constituição da República Federativa do Brasil manda garantir a todos um processo de duração razoável, com os meios que permitam sua rápida tramitação.

Sabiamente, o constituinte derivado distinguiu o processo e os meios de produzi-lo (tramitá-lo?). Aos operadores do Direito, especialmente aos juízes, cabe exigir que os sistemas processuais atendam ao menos a quatro princípios que podem levar um Sistema Eletrônico de Processamento de Ações Judiciais-SEPAJ a ser considerado um sistema quase cibernético:

I – o princípio da máxima automação,

II – o princípio da imaginalização[20] mínima ou da datificação[21] pertinente,

III – o princípio da extraoperabilidade e

IV – o princípio do máximo apoio ao ato de julgar.

Eles serão objeto de enunciação e explicação nos itens 5 a 8 deste artigo.

Existem algumas perguntas que, se formuladas, intrigam e demonstram quão distante se está de um SEPAJ com adequada incorporação das possibilidades das novas tecnologias e aderente às diretrizes acima.

Por que, quando se está elaborando a sentença, o sistema processual não pode responder diretamente perguntas simples como: o autor recebeu horas extras ao longo da contratualidade? Em que meses e quantas, pagas com que acréscimo? Elas correspondem às praticadas conforme os controles de jornada (supondo a existência de ponto eletrônico)? Foram observados os acréscimos convencionais aplicáveis em cada mês? Recebeu insalubridade, em que meses, em que grau e qual a base de cálculo? Recebeu FGTS, em que meses e quanto?

Por que tais verificações têm de continuar dependendo de uma “constatação visual” numa imagem digital?

Independentemente da resposta, importa consignar que não é por falta de recurso tecnológico. O estado da arte da tecnologia da informação permite elaborar um SEPAJ capaz de, nos casos em que tais informações existam e possam ser recebidas em formato adequado – e o art. 11 da Lei nº 11.419/2006 refere-se abrangentemente a documento eletrônico –, responder com simplicidade, rapidez e segurança a tais perguntas.

Um SEPAJ é um produto novo, híbrido, resultado da aplicação convergente de saberes científicos de diferentes áreas – teoria da informação, teoria dos sistemas, teoria da comunicação e telecomunicação, Cibernética, teoria geral do processo, teorias da administração e filosofia[22].

Pela natureza multidisciplinar do SEPAJ, as sugestões deste trabalho estão baseadas em teorias extrajurídicas – representadas paradigmaticamente pelo pensamento de Norbert Wiener[23], o pai da Cibernética e da automação eletrônica – e, é óbvio, em teorias sociológico-jurídicas, onde o pensamento sistêmico do sociólogo e jurista alemão Niklas Luhmann é tomado como referência. Sob tais fundamentos teórico-científicos, propõem-se as diretrizes (princípios) adiante, capazes de produzir uma consistente mudança de direção na concepção dos chamados SEPAJ, levando-os a merecerem o qualificativo de sistemas cibernéticos[24] de processamento de ações judiciais. E um processo tramitado com tal ferramenta merecerá ser chamado de um ciberprocesso.

2. NOBERT WIENER, CIBERNÉTICA E DIREITO

Como traçar cenários para o futuro do processo, com o uso das novas tecnologias, sem entender as possibilidades destas? Neste e no próximo tópico, sumarizam-se noções julgadas relevantes para um eficaz posicionamento estratégico dos juristas sobre o processo feito com as novas ferramentas tecnológicas.

Comece-se por noções de dado e informação,  fundamentais para evidenciar a

característica básica da atual geração de sistemas de processamento de ações, que tem de ser repensada.

Dado é “[…] tudo que é imediatamente apresentado ao espírito antes de toda e qualquer elaboração consciente.” Dados, no plural e no sentido que aqui interessa, podem ser considerados “[…] os elementos fundamentais de uma discussão (‘os dados de um problema’)”[25]. Informação é o “[…] conjunto de dados aos quais seres humanos deram forma para torná-los significativos e úteis.”[26] Henrique Gandelman[27], baseado em Edgar Morin, pedagogo e filósofo francês, afirma que se vive, atualmente, num mundo dominado pelo conhecimento, obtido da informação, que ele equipara a dado.        A informação proporciona a consciência dos componentes, limites e consequências de qualquer assunto. Para Morin e num sentido estrito, conhecimento tem a ver com inteligência, consciência ou sabedoria, que são a arte de vincular conhecimento de maneira útil e pertinente.

Pense-se na fase de conhecimento de um processo. Dados vão se somando, segundo uma ordem deteminada, para gerar informação que, processada, culmina numa sentença, informação derradeira e nova que alguns classificariam como conhecimento (Morin). Em essência, e utilizando-se a equiparação que Morin faz entre dado e informação, processo é informação[28].

Isso leva a Nobert Wiener[29], considerado o pai da Cibernética. Como reporta Dinio de Santis Garcia[30], Wiener lamentava a fragmentação da ciência e considerava os especialistas prisioneiros de espaços científicos progressivamente mais estreitos e isolados. Repudiava a repetição de trabalhos. Pregava a cooperação interdisciplinar.

Trabalhando no MIT com máquinas eletromecânicas, entendeu que “[…] outros meios deveriam ser procurados para que fossem alcançados processos mais velozes e resultados mais exatos.” [sem grifo no original] Nesse sentido, propôs a construção de uma máquina que operasse com números binários, eletronicamente, capaz de eliminar a intervenção do homem desde a entrada dos dados até a obtenção dos resultados (auto-controle/automação), dotada de um aparelho para armazenar dados, registrá-los, recuperá-los com rapidez e eliminá-los. Como não ver, aí, os atuais computadores eletrônicos, operados mediante programas automáticos baseados inteiramente em códigos binários (0 e 1), com suas memórias principais e secundárias (discos etc) regraváveis?

Nas suas investigações, Wiener percebeu que os problemas de controle e de comunicação (mensagem) se conectavam.

Sua teoria da comunicação e do controle, no animal ou na máquina, ele denominou de Cibernética, tendo lançado a obra Cybernetics or Control and Comunication in the Animal and the Machine (1948). Ao final da obra, afirma que o sistema social é uma organização “[…] vinculada por um sistema de comunicação, e possui uma dinâmica em que processos circulares que partilham da natureza da realimentação, desempenham importante papel […] nos campos gerais da […] sociologia […] economia […]”. Contrariando a visão precedente newtoniana de um universo cerradamente organizado, ele concebia o universo como contingente, probabilístico, uma noção muito mais próxima da realidade jurídico-processual[31].

Tais ideias influenciaram diretamente o jusfilósofo e sociólogo alemão Niklas Luhmann.

Por outro lado, ao teorizar a comunicação, Wiener considerava um sistema tanto mais ordenado quanto maior fosse o grau de coerção incidente sobre os seus elementos, o que significava maior quantidade de informação deles automaticamente processável. Essa visão wieneriana será já percebida, embora embrionariamente, no SUAP – Sistema Único de Administração Processual da Justiça do Trabalho[32], que está em vias de ser implantado experimentalmente em algumas varas.

Nesse passo, o pensador aproxima-se dos esforços de décadas para o estabelecimento de outra ciência, a Teoria Geral dos Sistemas, que se firmou a partir de 1956 com a fundação da Society for General Systems Research.

Direito e Cibernética são aproximados, pela primeira vez, pelo próprio Norbert Wiener, num dos capítulos da obra The human use of human beings. Cybernetics and Society, de 1950. Um dos dois grupos de problemas do Direito, segundo ele, diz respeito à técnica pela qual os propósitos do Direito podem ser postos em prática e que, naturalmente, estão na base deste trabalho. Umas dessas técnicas não seria o sistema processual?

Mas é importante consignar que, no tratamento do Direito como sistema – uma visão que não era estranha aos juristas – ele acaba por concluir que o Direito há deve ser visto “[…] como um sistema probabilístico – dados certos fatos e normas, é provável que sobrevenha decisão em determinado sentido” e, portanto, “[…] havendo conflito o juiz é chamado a individualizar e a dar concreção à norma, e/ou a completar o sistema.”[33] Apregoa, assim, o aperfeiçoamento das estruturas e dos procedimentos para facilitar o alcance dos objetivos do Direito mediante a eficaz e rápida atuação do juiz nas situações de conflito.

Mesmo desta apertada síntese, é forçoso admitir a relevância comum, no Direito atual e na Cibernética, de temas como sistema, comunicação e controle/automação.    O suporte teórico das ponderações wienerianas aos princípios adiante propostos                é evidenciado pelos textos em negrito: preocupação com os dados, informação, inteligência para caminhar da mecanização para a automação, cooperação interdisciplinar (sistêmica?), condenação do retrabalho.

3. AS TÉCNICAS DE APLICAÇÃO DO DIREITO E O CIBERESPAÇO

Consigna-se, agora, a visão absolutamente inovadora de Wiener quando comparou a informação à energia e à matéria, dizendo-a mais valiosa. Daí nasceram duas noções: I – a de que informação (conhecimento) é poder e II – a do ciberespaço, em que se abstraem as duas outras ideias (matéria e energia, os suportes físicos) e trabalha-se apenas com a informação suportada e tramitada. Um mundo puro da informação. Matéria e energia, nesse caso, passam apenas à condição de meros instrumentos da manutenção do realmente importante: a informação em circulação.

O desenvolvimento da microeletrônica, das telecomunicações e da Teoria               dos Sistemas levou à concretização da ideia wieneriana nas décadas subsequentes.            E atualmente falamos do processo eletrônico: a informação armazenada e tramitada pelos novos meios, impensáveis há poucos anos, a serviço dos objetivos do Direito. O processo no ciberespaço.

Segundo André L. M. Lemos[34], doutor em sociologia e professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Faculdade de Comunicação (FACOM) da UFBA/CNPq, o ciberespaço é difícil de definir e compreender. “Temos uma ideia do cyberespaço como o conjunto de redes de telecomunicações criadas com o processo digital das informações”, diz ele, mas acrescenta que essa concepção oculta muitas facetas do fenômeno. No ciberespaço, redefinem-se noções de I – espaço e tempo – pense-se no peticionamento eletrônico, nas contagens de prazo do processo eletrônico –, II – de natural e artifical – pense-se nos documentos e assinaturas digitais – e III – de real e virtual.

 

Hoje entendemos o cyberespaço à luz de duas perspectivas: como o lugar onde estamos quando entramos num ambiente virtual (realidade virtual), e como o conjunto de redes de computadores, interligadas ou não, em todo o planeta (BBS, videotextos, Internet…). Estamos caminhando para uma interligação total dessas duas concepções do cyberespaço, pois as redes vão se interligar entre si e, ao mesmo tempo, permitir a interação por mundos virtuais em três dimensões. O cyberespaço é assim uma entidade real, parte vital da cybercultura planetária que está crescendo sob os nossos olhos.

Mesmo sem ser uma entidade física concreta, pois ele é um espaço imaginário, o cyberespaço constitui-se em um espaço intermediário. Ele não é desconectado da realidade mas, ao contrário, parte fundamental da cultura contemporânea. O cyberespaço é assim um complexificador do real. Como afirma Kellogg, ele aumenta a realidade já que ele supre nosso espaço físico [tridimensional] de uma nova camada eletrônica. No lugar de um espaço fechado, desligado do mundo real, o cyberespaço colabora para a criação de uma “realidade aumentada”. Ele “faz da realidade um cyberespaço”.[35] [sem grifo no original]

 

Lembra ainda, o estudioso baiano, que “[…] no cyberespaço, a conexão é em tempo real, imediata, ‘live’. Ela nos permite passar de uma referência à outra, sendo a conexão imediatamente disponível” e que “[…] passamos de referências a referências, de servidor a servidor, de país em país com um simples ‘click’ do ‘mouse’, sem saber onde começa e onde termina o processo”.

 

Os novos meios de comunicação que coletam, manipulam, estocam, simulam e transmitem os fluxos de informação criam assim uma nova camada que vem se sobrepor aos fluxos materiais que estamos acostumados a receber. O cyberespaço é um espaço sem dimensões, um universo de informações navegável de forma instantânea e reversível. Ele é dessa forma um espaço mágico; já que caracterizado pela ubiquidade, pelo tempo real e pelo espaço não físico […]

Depois da modernidade que controlou, manipulou e organizou o espaço físico, nos vemos diante de um processo de desmaterialização pós-moderna do mundo. O cyberespaço faz parte do processo de desmaterialização do espaço e de instantaneidade temporal contemporâneos, após dois séculos de industrialização moderna que insistiu na dominação física de energia e de matérias, e na compartimentalização do tempo. Se na modernidade o tempo  era uma forma de esculpir o espaço, com a cybercultura contemporânea nós assistimos a um processo onde o tempo real vai aos poucos exterminando o espaço.[36] [sem grifos no original]

 

O ciberespaço é, portanto, nas palavras de André L. M. Lemos, um universo de pura informação, caracterizado pela ubiquidade e pela aniquilação do espaço pelo tempo real (instantaneidade). Um ciberprocesso, concebido como o processo do ciberespaço, realizado mediante um sistema processual que incorpore, maximamente, as particularidades tipificadoras dessa nova realidade, contribuirá fatalmente para a aceleração das respostas do Poder Judiciário às muitas demandas que lhe são postas.

4. LUHMANN, DIREITO E SISTEMA. DIFERENCIAÇÃO FUNCIONAL, AUTONOMIA, AUTO E HETEROREFERENCIABILIDADE. COMUNICAÇÃO COMO CONCEITO-GUIA DOS SISTEMAS

O sociólogo e jurista alemão Niklas Luhmann[37] inicialmente teorizou o Direito e o procedimento à luz da Teoria dos Sistemas e da Cibernética, afirmadas a partir da década de 1940. Os fundamentos primeiros de sua teoria – Pragmática Sistêmica                – estão expostos nas obras Legitimação pelo procedimento, de 1969, polêmica e impactante, e Sociologia do Direito[38], em 2 volumes, de 1972.

O esforço teórico do pensador alemão sofreu grande impacto em meados da década de 70. Alberto Febbrajo[39], que escreveu a introdução à edição italiana de Sistemi Sociali. Fondamenti di uma teoria generale, de 1984, chega a mencionar dois Luhmanns. O primeiro, das décadas de 60 e 70, e o segundo, de meados da década de 80 em diante, quando reformulou sua teoria para absorver os novos conceitos da biologia em torno da ideia de autopoiese (sistemas autoreferenciais ou autopoiéticos).

O PRIMEIRO LUHMANN

Falando do primeiro Luhmann e da Pragmática Sistêmica[40], Tércio Sampaio Ferraz Jr. destaca, no enfoque empírico luhmanniano, o enfrentamento do desafio teórico de definir o Direito numa perspectiva sistêmica[41]. O próprio Luhmann, no prefácio da reedição de Legitimação pelo Procedimento, informa: “Este livro procura reconstruir para os modernos sistemas políticos as idéias jurídicas centrais do processo legal com a ajuda de meios sociológicos e principalmente com meios da teoria dos sistemas.”[42] [sem grifo no original]

Com linguajar inspirado em Talcott Parsons[43], Niklas Luhmann descreve a sociedade como um sistema estruturado de ações significativamente relacionadas. Homem e sociedade são, um para o outro, complexo e contingente. Mas o todo estrutural os contempla e lhes permite a coexistência[44]. O Direito, como subsistema social, é a estrutura definidora dos limites e das interações.

Estruturalmente, o Direito se faz de normas, instituições e núcleos significativos.  A esses elementos estáticos, acresce-se o elemento dinâmico – o procedimento –

indispensável para o Direito, enquanto sistema, cumprir sua função.

Descendo na cadeia estrutural e fechando o foco no procedimento judicial, diz Luhmann: “Como todos os sistemas, os procedimentos judiciais constituem-se                 pela diferenciação, pela consolidação dos limites frente ao meio ambiente.”[45] Nos procedimentos, sem exceção, erige-se a decisão como o elemento fundamental, apto a “[…] absorver e reduzir a insegurança […]”, associando-lhe um mecanismo de construção eficaz para trocar “[…] a incerteza de qual decisão ocorrerá pela certeza de que uma decisão ocorrerá[…]”. Nesse sentido, poder-se-ia pensar que “[…] a ciência jurídica se revela não como teoria sobre a decisão mas como teoria para a obtenção da decisão”[46] que goze da prontidão generalizada de aceitação. Assim, o procedimento constitui um sistema programado de decisão[47].

Por outro lado, diferenciar-se significa fixar limites frente ao meio ambiente. Não se trata de “[…] romper a continuidade com estruturas e acontecimentos para além dos procedimentos”[48]. A diferenciação mantém o contato causal e comunicativo com outras estruturas. Esse contato, entretanto, se dá segundo regras específicas  do procedimento, ou seja, o procedimento estabelece os modos de intercâmbio             de informações com o seu entorno. Quais informações têm acesso ao ambiente diferenciado, qual o modo desse acesso, que informações são produzidas, qual o modo e como se comunicam para o exterior são as especificações a serem feitas.

Pela diferenciação, os sistemas constroem um ambiente particular, intelectual, no qual só entram informações selecionadas e elaboradas por processos “[…] orientados por regras e decisões próprias do sistema[…]”[49]. Isso equivale a dizer que dados do mundo circundante não são automaticamente válidos no sistema. O sistema exerce um controle, uma filtragem, sobre as informações do meio ambiente, trazendo para seu interior apenas as que lhe interessam e na forma adequada para o cumprimento de seus fins. A diferenciação implica, portanto, uma efetiva e própria redução seletiva das possibilidades existentes no ambiente complexo externo.

Tércio Sampaio Ferraz Jr.[50] chama a atenção para três categorias teóricas fundamentais da ideia de Direito no primeiro Luhmann: complexidade, sistema e mundo circundante. Sistema[51] é “[…] um conjunto de elementos delimitados segundo o princípio da diferenciação. Os elementos, ligados uns aos outros, excluem outros elementos do seu convívio, formam em relação a estes, um conjunto diferenciado.” Evidencia-se, portanto, a separação dos elementos em dois subconjuntos: os do sistema e os externos ao sistema, o mundo circundante que significa complexidade e contingência. Mas a diferenciação sistêmica não significa restrição comunicativa absoluta entre os subsistemas. Pelo contrário, ela prevê um fluxo controlado e seletivo, filtrado, de comunicação entre as estruturas.

Para que a diferenciação se estabeleça, é indispensável que o sistema seja autônomo[52], uma característica dos sistemas dependentes de um intercâmbio ativo com o meio-ambiente e que diz respeito à regência desse processo de permuta.                   O sistema se diz autônomo se estruturas e métodos próprios, internos, controlam             o processo de troca. Em vez de independentes, sistemas autônomos costumam ser muito dependentes do meio-ambiente, em vários sentidos.

Os processos judiciais de aplicação do Direito gozam de grande autonomia, apesar das mencionadas limitações e dependências de outros sistemas. Isso pode ser afirmado na medida em que a aplicação do Direito se faz segundo as regras internas do procedimento. O cumprimento da função é utônomo.

O SEGUNDO LUHMANN

Reporta Fritjof Capra[53] que, na década de 70, a descoberta da nova matemática da complexidade e a emergência de uma nova e poderosa concepção, a de auto-organização, “[…] que esteve implícita nas primeiras discussões dos ciberneticistas [década de 40], mas não foi explicitamente desenvolvida nos outros trinta anos”, deram fôlego novo à teoria dos sistemas. A idéia de padrão estava na base dessa nova compreensão porque “propriedades sistêmicas são propriedades de um padrão.”

Humberto Maturana[54], neurocientista chileno, na década de 60, durante 6 anos desenvolveu pesquisas sobre os sistemas vivos, na Inglaterra e Estados Unidos (MIT), sob forte influência da Cibernética. Em 1972, ele e Francisco Varela, que se tornou seu colaborador na Universidade de Santiago, lançaram um ensaio com a ideia de sistemas auto-organizadores ou autopoiéticos, como os designaram, pois consideravam autopoiese “[…] a organização comum a todos os sistemas vivos.”[55] Nos seus pensares, eles retomaram ideias antigas, sob novo enfoque, como as de padrão, organização, estrutura, processo, ordem e desordem (entropia), redes binárias. As ideias foram transpostas, depois, para organismos e sociedades, retornando-se às ideias básicas de comunicação e acoplamento estrutural (interação).

Tais ideias impactaram profundamente o pensamento luhmanniano em torno dos sistemas sociais, onde se insere o Direito. O jusfilósofo alemão absorve os conceitos de autoreferência constitutiva (sistema autopoiético) e heteroreferência, esta posta como condição de sobrevivência[56]. E renova as ideias de sistemas abertos e fechados, relacionando reflexamente as duas concepções: “O seu fechamento é ao contrário a condição que torna possível a sua abertura.”[57] [tradução livre]

Interessa aqui, muito de perto, que a mudança de paradigma realçou o problema da conexão entre os sistemas: “[…] não se trata mais do problema da repetição,              da interação defensiva, mas do problema da conexão […]” e, como conexão atrai comunicação, “se pode ao invés disso dizer que o conceito de comunicação tende não mais a apoiar-se no conceito de função mas a substituí-lo como conceito guia […]”[58]. [tradução livre, sem grifo no original] “Isso exige outras técnicas teóricas a respeito da defendibilidade e da capacidade de conexão em direção ao interior (interno) e o exterior (externo) […]”[59]. [tradução livre] A ideia da fundamentalidade da comunicação nos sistemas, lembre-se, é wieneriana.

Sistemas concebidos a partir da ideia guia da comunicação, “ […] devem produzir e utilizar uma descrição de si mesmos; devem ser capazes de utilizarem-se dentro do sistema, da diferença entre sistema e ambiente, como orientação e como princípio para a produção de informações. […]”, o que exige pensar o ambiente como “[…] um correlato necessário de operações autoreferenciais, uma vez que estas operações não se podem desenvolver sob as promessas do solipsismo”[60]. [tradução livre, sem grifo no original]

Para o segundo Luhmann,

 

a relação com o ambiente […] é constitutiva para a formação de sistemas; isso não tem, simplesmente, uma relevância “acidental”, em confronto com a “essência” do sistema; nem o ambiente é importante exclusivamente para a “conservação” do sistema, para o abastecimento energético e de informação. De acordo com a teoria dos sistemas autoreferenciais, o ambiente constitui, sim, o pressuposto da identidade do sistema porque a identidade só é possível por meio da diferença.[61] [tradução livre, sem grifo no original]

 

Este trabalho chama a atenção para o isolamento em que tem sido pensado o SEPAJ e para a persistência dos mecanismos de alimentação não automáticos, sem aplicação das ideias de heteroreferenciabilidade e de extraoperabilidade, apesar das possibilidades tecnológicas do espaço cibernético.

Embora seja comum aos juristas a ideia de alimentação do sistema processual (juntar cópias aos processos, por exemplo, ou juntar uma petição!), o modo e a forma dessa interação sistema ambiente não tem sofrido o tratamento adequado e necessário, incorporando todas as luzes e potencialidades das novas tecnologias,              na concepção do SEPAJ. É preciso estar alerta para o fato de que “o ambiente é             uma realidade que subsiste em relação ao sistema” e “[…] o ambiente inclui uma variedade de sistemas mais ou menos complexos que podem entrar em relação com o sistema do qual constituem o ambiente.”[62] [tradução livre, sem grifo no original] Relação essa que, como se verá no momento próprio, mais à frente, está ao alcance do estado da arte das tecnologias da comunicação e da teoria dos sistemas. “[…] Cada sistema deve levar em conta, no seu ambiente, os outros sistemas”[63] [tradução livre], alerta Luhmann.

A Luhmann não passou despercebida a necessidade imperiosa de zelo no estabelecimento dos mecanismos de contato sistema-ambiente. Desde os requisitos da autonomia – das primeiras concepções do pensador – até suas últimas formulações na Teoria dos Sistemas, tais cuidados na interação sistema-ambiente são objeto de alerta, mas não impedimento para os contatos, tidos como constitutivos e condição da própria existência dos sistemas:

 

A diferença entre sistema e ambiente estabelece, em outras palavras, um desnível de complexidade. Por esta razão, a relação entre sistema e ambiente é necessariamente assimétrica. O desnível existe apenas em uma direção, e               não pode ser invertido. Cada sistema deve, realmente, afirmar-se contra a esmagadora (devastadora) complexidade do próprio ambiente. […] É por isso que o desenvolvimento de um sistema mediante diferenciação pode ser descrito também como […] um aumento simultâneo, portanto, da dependência e da independência[64]. [tradução livre, sem grifo no original]

 

Essa noção o jurista reforça especificamente: “O problema da especificação dos contatos ambientais […] deve ser considerado um problema central de todos os sistemas complexos […].”[65] [tradução livre, sem grifo no original] Inclusive, remontando a ideias da década de 20, Luhmann lembra que “a teoria dos sistemas ‘abertos                  ao ambiente’, desenvolvida por Ludwig von Bertalanffy, tinha sugerido descrever a relação dos sistemas com o exterior utilizando os conceitos de entrada e de saída. Este esquema conceitual apresenta, de fato, muitas vantagens.”[66] [tradução livre]

É necessário que na concepção de um SEPAJ tais ideias sejam levadas muito a sério, sob pena de comprometer o alcance das imensas expectativas postas nesses sistemas eletrônicos de processamento de ações.

Postos, assim, apertadamente, os balizamentos teóricos, tecnológicos e jurídicos, pode-se avançar às proposições deste trabalho, traduzidas nos quatro princípios              que se seguem. Em cada um deles, esboçam-se os respectivos fundamentos, mas o leitor poderá identificar, por si mesmo, os contatos com as bases teórico-científicas reportadas.

5. O PRINCÍPIO DA MÁXIMA AUTOMAÇÃO

Tudo que for passível de automação, deve ser automatizado, respeitados os princípios jurídicos materiais e processuais.

A automação, viabilizada pelos avanços da cibernética e demais tecnologias             da informação, é instrumento de barateamento da produção de qualquer trabalho e de aumento incomensurável da produtividade.

Há algumas décadas, uma pergunta básica para os homens de decisão era                  “o que automatizar”? Os anos tornaram essa pergunta obsoleta. No âmbito jurídico-processual, principalmente e agora, a pergunta deve ser feita ao contrário: “o que não se deve automatizar?” E a resposta, para ser aceita, deve ser bem justificada.

Por trás desse princípio, estão duas noções básicas:

I – a ideia de que há – e haverá sempre –, atos processuais não automatizáveis, conforme a previsão wieneriana. Mas o comando de otimização para o processo eletrônico deve ser no sentido de se alcançar, um dia, as fronteiras do “não automatizável”, entregando às tecnologias digitais tudo aquilo que for passível de automação (automação máxima). Precisa-se desmontar os “espaços sagrados” e destravar a inventividade dos técnicos e

II – a implicação óbvia da revisão dos procedimentos pois, segundo uma         velha verdade da análise de sistemas, toda automação dever vir acompanhada da correspondente subotimização[67].

O legislador, que sempre foi renitente e temeroso, agora abriu as portas amplamente para a tecnologia nos SEPAJ. Basta interpretar adequadamente, por exemplo, os           arts. 11, 13 e 14 da Lei nº 11.419/2006, entre outros.

No artigo 11, o legislador menciona genericamente os documentos produzidos eletronicamente. Em interpretação adequada, cabe aí toda forma de dado digital passível de tratamento direito e imediato pelo sistema processual. No parágrafo 1º do mesmo artigo, são referidos extratos digitais ao lado de documentos digitalizados, duas coisas diversas.

O artigo 13, cuja redação se transcreve, dá ampla liberdade para os magistrados abandonarem formas inadequadas de representação dos dados e exigirem que os dados sejam trazidos de forma a permitir a máxima automação do SEPAJ: “O magistrado poderá determinar que sejam realizados por meio eletrônico a exibição e o envio de dados e de documentos necessários à instrução do processo.” Essa permissão completa-se com o disposto no parágrafo 1º, segundo o qual “consideram-se cadastros públicos, para os efeitos deste artigo, dentre outros existentes ou que venham a ser criados, ainda que mantidos por concessionárias de serviço público ou empresas privadas, os que contenham informações indispensáveis ao exercício da função judicante.”

Por outro lado, no parágrafo 2º, o legislador abre as portas para que o acesso aos dados seja feito com respeito aos princípios da eficiência e do menor custo, sem outros condicionamentos.

Finalmente, cabe ainda destacar o parágrafo único do artigo 14, pela absoluta novidade de sua disposição: “Os sistemas devem buscar identificar os casos de ocorrência de prevenção, litispendência e coisa julgada.” A permissão para a inteligência no processo e o avanço dos programas processuais a espaços até agora não cogitados é clara, claríssima. Está autorizada a perseguição do nível máximo de automação num SEPAJ.

Portanto, é o momento de se aceitar que a automação “[…] é fonte inesgotável de melhoramentos em todas as esferas da vida, traz enorme aumento de produtividade, e está fadada a transformar, com o tempo, todos os aspectos da existência humana.”[68] E de se exigir a máxima automação do sistema processual.

Isso tudo sem abandonar a responsabilidade final da decisão de introdução da tecnologia no processo. Isto é, demonstrada a possibilidade da automação, os juristas, considerados os princípios jurídicos materiais e processuais envolvidos, devem dar a palavra final sobre a utilização da inovação proposta.

6. PRINCÍPIO DA IMAGINALIZAÇÃO MÍNIMA (OU DA DATIFICAÇÃO PERTINENTE)

O princípio pode ser explicitado por dois enunciados:

Se o dado existir em formato mais adequado para a instrução processual, deve ser desprezada a imagem ou

O dado deve chegar ao SEPAJ na forma mais adequada para a máxima automação.

Sem desprezar a “força de uma imagem”[69], considere-se que uma imagem digitalizada é um dado de difícil tratamento, além de “pesado” para armazenar. O que um computador é capaz de extrair de uma imagem produzida num escaner, para produzir informação útil para o magistrado e o processo, é mínimo ou zero. Submeter os advogados à prática do escaneamento de envelopes de pagamento e cartões de ponto, por exemplo, para juntar ao processo, não se compatibiliza com o princípio da máxima automação em dois sentidos: a) a produção e a alimentação do dado continua mecânica e b) fecha-se o caminho para o tratamento inteligente das informações contidas no documento, uma condição necessária para a máxima automação.

Os autos virtuais poderão ser considerados “lixo eletrônico” expressivo no futuro. Já há quem manifeste preocupação nesse sentido. Fala-se em desmaterializar o processo, pelo fato de gravar imagens digitais das páginas dos autos em suporte físico diferente (discos rígidos, dvd´s, fitas). Vale relembrar que quando, mediante escaneamendo, ainda que com certa indexação, reduzem-se os autos a imagens digitais, o que é desmaterializado é o papel. Os autos são copiados para um           outro suporte físico. Mas continuam praticamente no mesmo nível de entropia[70], considerando-se que a obtenção das informações contidas nas imagens dependem dos sentidos humanos (ler as imagens na tela do computador).

Massas de dados nesse formato são “não processáveis automaticamente” para produzir informação e conhecimento. E o máximo que o computador pode fazer             com elas é armazenar, ou esconder, e exibir para que o ser humano, olhando, extraia dali a informação necessária. Quando o juiz quiser ver o envelope de pagamento de determinado mês, não mais correrá as páginas ensebadas dos autos, umedecendo os dedos. Passará imagens na tela do computador – aliás, segundo alguns, numa das telas, pois terá de utilizar mais de uma – clicando no mouse ou com page-up e page-down.

A imaginalização, portanto, deve ser mínima, e a datificação deve ser adequada para a máxima automação. Haverá caminhos tecnológicos para isso? No ambiente virtual, no ciberespaço, os caminhos e as possibilidades ampliam-se drasticamente.  É o que demonstra o próximo princípio.

7. PRINCÍPIO DA EXTRAOPERABILIDADE

Um SEPAJ deve ser concebido como um subsistema autônomo e estruturalmente acoplado.

Permita-se relembrar rapidamente o enfoque sistêmico luhmanniano do processo e o procedimento. Ao teorizar a sociedade sob as luzes da teoria dos sistemas, Niklas Luhmann introduziu conceitos que são fundamentais quando se pensa nos sistemas eletrônicos de processamento de ações. À luz da teoria dos sistemas das décadas de 50 e 60, Luhmann afirmava que os subsistemas sociais, aos quais equipara expressamente o procedimento judicial, se formam por diferenciação funcional e são autônomos[71].

O Niklas Luhmann que Alberto Febbrajo chama de segundo Luhmann absorveu, na década de 70, as novas ideias sobre sistemas autopoiéticos, e passou a referir-se a sistemas autoreferenciais, que têm sua sobrevivência condicionada pela heteroreferenciabilidade, ou seja, devem estar estruturalmente acoplados ao sistema total, ao ambiente[72]. “O sistema e o ambiente concorrem sempre para a realização de todos os efeitos […] Não existem sistemas sem ambientes ou ambientes sem sistemas […] “[73] [tradução livre]. Niklas Luhmann acentua, assim, o problema da conexão entre os subsistemas, elevando sobremaneira a importância da ideia de comunicação: “Se pode assim dizer que o conceito de comunicação tende não mais a se apoiar no conceito de função, mas a substituí-lo como conceito-guia […] “[74][tradução livre], chegando a dois outros conceitos chaves: interpenetração e interação.

Veja-se agora a questão sob enfoque da tecnologia da informação. O palavrão interoperabilidade ganhou força, a partir do surgimento da internet, porque no mundo virtual todos os sistemas devem poder comunicar-se entre si. Essa comunicação é condição da sobrevivência dos milhões de sistemas presentes na rede. Esses sistemas devem ser capazes de comunicar-se entre si, segundo determinados padrões (protocolos), com fluxo de informação em geral bilateral[75].

Ocorre que, no meio tecnológico-jurídico (entre os técnicos que trabalham em sistemas eletrônicos para processo), reduziu-se o alcance do termo interoperabilidade para significar a possibilidade de contato apenas entre os sistemas processuais – dos diferentes tribunais, das diferentes instâncias etc. Ainda hoje se pode dizer que ela é mínima e na documentação do SUAP-Sistema Único de Administração Processual da JT, antes referida, a interoperabilidade – com essa acepção reduzida – é posta como uma melhoria a ser perseguida (item 7, p. 14).

Isso exigiu o neologismo extraoperabilidade, aqui proposto, para referir a conexão dos sistemas processuais com o mundo, com os demais sistemas eletrônicos disponíveis na sociedade e nos quais se encontra a grande massa de informação necessária para as ações e decisões processuais[76]. Tem-se de quebrar o hermetismo secular cultuado pelo direito (o que não está nos autos não está no mundo).                      O paradigma novo, que se propõe para o ciberprocesso, é “o que não está nos autos, está no mundo ou num outro sistema.”. E um sistema processual, devidamente acoplado (conectado), deve estar habilitado a especificar e controlar o fluxo das informações de e para o seu interior, na forma adequada para o processamento e para o alcance da máxima automação.

Exemplo de pergunta simples e intrigante: por que um advogado deve escanear os envelopes de pagamento de um empregado, dos últimos cinco anos, para juntar aos autos, se o sistema de folha de pagamento pode gerar um arquivo pequeníssimo, digital, compactado, criptografado e certificado, para entregar ao sistema processual e pôr nos autos toda a riqueza de informação contida (mas não tratável) naquela maçaroca de imagens? A partir dessas informações digitais, geradas segundo os padrões definidos pelo Poder Judiciário, quanta resposta buscada pelos juízes, no ato de julgar, poderá imediatamente ser dada pelo computador? Recebeu insalubridade? Recebeu horas extras? Quantas e com que adicional? Em que meses? Quero um mapa histórico das horas extraordinárias pagas!

Lembre-se, por exemplo, que o Ministério do Trabalho e Emprego especifica como os sistemas de folha de pagamento devem produzir, anualmente, a RAIS (Relação Anual de Informações Sociais). Esses sistemas também podem ser legalmente obrigados a conter, por exemplo, um pequeno algoritmo gerador do arquivo FDPJ-Folhas Digitais para Processo Judicial, contendo os envelopes de um certo empregado e de um certo período. O mesmo se diga dos sistemas de ponto eletrônico. E dos dados funcionais. O poder judiciário especifica a forma e os sistemas externos geram o tal arquivo para juntada ao sistema processual.

Outros exemplos:

I – Saber se houve ou não depósitos do FGTS para certo empregado, num período, e quanto, poderá depender apenas de uma consulta sistema-sistema para o sistema da CEF. A interação com o sistema do BACEN pode ser totalmente automatizada, tornando-se mais segura e rápida;

II – Por que, até hoje, não se dispõe de um banco de dados de Convenções Coletivas de Trabalho, adequadamente construído, para responder ao que os juízes precisam saber ao decidir? Os advogados continuam fazendo cópia da cópia para juntar as CCT´s aos autos. Será que precisarão continuar juntando as imagens escaneadas aos autos de cada processo?

III – Qual a situação de um autor diante do INSS, num certo período? O que aconteceu com ele junto ao INSS? Por que o SEPAJ e o sistema da Dataprev não podem comunicar-se para a alimentação digital automática dessa informação;

IV – Os dados societários podem ser obtidos dos sistemas das Juntas Comerciais virtuais;

V – Por que as guias de arrecadação fiscal e de recolhimento, de custas e de depósito recursal, não podem ser geradas automaticamente para pagamento por internet banking, com toda exatidão, dispensando-se qualquer outra operação manual no procedimento, inclusive juntadas?

Os técnicos multiplicarão essas possibilidades ao infinito. A tecnologia é capaz disso tudo! Está aí disponível. Basta vontade e comando/abertura para que seja utilizada.

8. O PRINCÍPIO DA PRIORIDADE À FUNÇÃO JUDICANTE                   (ATO DE JULGAR)

Um SEPAJ deve orientar-se pelo apoio máximo à função judicante estrita (ato de julgar).

O ato de decidir está preocupando os técnicos e está sendo visto como o gargalo dos sistemas processuais[77]. Por isso, a parcela mais expressiva de funcionalidades inteligentes de um SEPAJ deve estar voltada para o apoio máximo aos juízes no momento solitário da elaboração da decisão. A função diretiva básica, norteadora do desenvolvimento de um SEPAJ, deve ser a função decisória. É a partir dela que deve ser feita a concepção do sistema. Apoiá-la maximamente deve ser o objetivo de  todos os demais passos do desenvolvimento do SEPAJ – especificação dos dados de entrada, formato, alimentação e armazenamento e os procedimentos de tratamento             (o programa em si). Afinal, segundo Eaton e Smithers, “a primeira revolução industrial aplicava a máquina para ampliar o poder dos músculos do homem, ao passo que a segunda vai aplicar a TI para ampliar o poder da mente do homem.”[78]

O juiz Hércules, concebido por Ronald Dworkin[79], não existe! Mas qualquer juiz, com o apoio tecnológico adequado, pode “herculizar-se” e ser capaz de considerar imparcialmente todos os sinais característicos relevantes de uma situação, numa dimensão de tempo adequada, à luz dos grandes princípios do ordenamento jurídico, de modo coerente e indutor da integridade do sistema.

Aristóteles fazia depender o correto julgamento da faculdade de julgar – phrónesis, um dom, pois “proceder assim [decidir corretamente] em relação à pessoa certa, até o ponto certo, no momento certo, pelo motivo certo e da maneira certa, não é para qualquer um, nem é fácil”[80] As tecnologias da informação podem colocar-ser ao lado do juiz para facilitar-lhes o exercício da função num nível de excelência superior.

Os técnicos precisam saber o que os juízes buscam nos autos (que perguntas se fazem e que buscas realizam) ao decidir. A partir delas, poderão desenvolver o SEPAJ para, sendo possível, o sistema dispor das respostas prontas quando forem necessárias. Uma imensidão delas poderá ser facilmente respondida se o SEPAJ estiver I. preparado para isso (programado), II. adequadamente alimentado e III. estruturalmente acoplado com os demais sistemas do mundo virtual. Por enquanto, os sistemas têm se ocupado demais das “franjas do processo”.

Segundo Blaise Pascal, “é necessário conhecer as partes para entender o todo, mas é necessário conhecer o todo para entender as partes.” O juiz é aquele que entende o todo e as partes do processo. Está em suas mãos dizer onde quer a tecnologia, até onde quer a tecnologia e de que forma quer a tecnologia, sendo necessário, para isso, abrir-se para o entendimento do entorno do Direito ou, mais precisamente, para o entendimento das potencialidades das tecnologias digitais, colocando-a a seu serviço.

Da tarefa trivial de formatar originalmente a sentença, até o fornecimento de informações relevantes para a decisão, um SEPAJ pode ser o parceiro fiel do juiz.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este é um texto para juristas, notadamente os magistrados, mas não é sobre leis. É um texto que propõe aos magistrados pensarem (pensamento estratégico) seu futuro, e notadamente sua atividade, com a tecnologia. Teleologicamente, o texto provoca os magistrados para participarem ativamente do planejamento do futuro da prestação jurisdicional que as tecnologias digitais permitem construir – uma prestação jurisdicional mais célere, aperfeiçoada e justa. O Direito, só o Direito, já não pode responder de forma adequada aos grandes anseios de justiça e equidade das complexas sociedades democráticas atuais.

O juiz, com o uso das tecnologias da informação, poderá, no futuro, valer-se de um processo automatizado e inteligente, um ciberprocesso. Um SEPAJ, a ferramenta necessária para a tramitação de um ciberprocesso, merecerá idêntico qualificativo – sistema cibernético de processamento de ações – quando I. tiver alcançado a máxima automação, II. for alimentado precipuamente por dados automaticamente processáveis, III. estiver conectado e interativo com os demais sistemas virtuais do ciberespaço e, principalmente, IV. for robustamente inteligente para apoiar o magistrado no ato culminante do processo: o ato decisório.

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* As ideias deste trabalho foram apresentadas em conferência ministrada pelo autor no Evento “O processo eletrônico e as novas tecnologias”, durante o Encontro das Escolas e Amatras do Sul – 2009, ocorrido em Florianópolis/SC, de 26 a 29 de março de 2009, promovido pela Escola Judicial e de Administração Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região e pela Amatra XII). Agradece-se ao TRT 12, na pessoa da Desembargadora Marta Maria Villalba Falcão Fabre; à Escola Judicial e de Administração Judiciária do TRT 12, nas pessoas do Diretor Desembargador Édson Mendes de Oliveira e do Vice-presidente Juiz Amarildo Carlos de Lima e à Amatra XII, na pessoa do Presidente Juiz José Carlos Külzer, pelo convite e oportunidade para expor as ideias. Agradece-se, também, à Secretaria de Informática do TRT 12, na pessoa do Técnico Judiciário Ovídio Franco de Sá Menezes, e ao analista e especialista em ferramentas de desenvolvimento de sistemas, Nuno Francisco Simão, pelas produtivas conversas a respeito.

[1] Consigne-se que o STDI – o sistema de peticionamento eletrônico implementado, em 1999, pelo TRT da 12ª Região, já dispensava a juntada dos originais, a posteriori, apesar da dicção expressa da lei daquele ano (Lei nº 9.800/99), em sentido contrário. Na época, o TRT (os juristas) decidiu autorizar a dispensa da juntada e os técnicos, com os recursos da época, puseram a ideia em prática, com excelentes resultados.

[2] Parece que o mais pertinente seria a utilização da expressão “procedimento eletrônico”, pois o que está em questão é “[…] o meio extrínseco pelo qual se instaura, desenvolve-se e termina o processo; é a manifestação extrínseca deste, a sua realidade fenomenológica perceptível.” CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, et al. Teoria Geral do Processo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 277. No entanto, adota-se a terminologia do próprio legislador posta na Lei 11.419/2006, em vários dispositivos do capítulo III –             Do processo eletrônico.

[3] “[…]assim denominado porque seu procedimento utiliza meios físicos que são o objeto de estudo da  parte da física chamada eletrônica […]”. PEREIRA, S. Tavares. O processo eletrônico e o princípio            da dupla instrumentalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, nº 1937, 20 out. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp? id=11824>. Acesso em: 16 mar. 2009. p. 1. A eletrônica é                   “a parte da física dedicada ao estudo do comportamento de circuitos elétricos que contenham válvulas, semicondutores, transdutores etc, ou à fabricação de tais circuitos.” FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Eletrônico Século XXI. Versão 3.0. São Paulo: Lexikon Informática, 1999.

[4] O extenso é da lei citada. A sigla é proposta para facilitar a referência ao gênero dos sistemas eletrônicos de processamento de ação judicial. Há vários deles em uso (PROJUDI, por exemplo) e outros em vias de entrar em produção (SUAP do CSJT, PROVI/SC). Eles podem ser classificados em grupos ou espécies, segundo algumas características básicas como: nível de automatização adotado nas rotinas de secretaria, técnicas de interação com os advogados etc.

[5] BRASIL. Lei nº 11.419, de 19 de dezembro de 2006. Dispõe sobre a informatização do processo judicial; altera a Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 20 dez. 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei11419.htm>.

[6] BRASIL. Lei nº 9.800, de 26 de maio de 1999. Permite às partes a utilização de sistemas de transmissão de dados para a prática de atos processuais. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 26 maio 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9800.htm>. Acesso em: 26 set. 2008.

[7] A visão dworkiana que inovou, de forma irreversível, a teorização do Direito pela via da inclusão dos princípios, está bem marcada por H. L. A. Hart, o último dos grandes positivistas, no pós-escrito incluído  na obra O conceito de Direito trinta e dois anos depois da publicação: “Dworkin é credor de grande reconhecimento por ter mostrado e ilustrado a importância desses princípios e o respectivo papel no raciocínio jurídico, e, com certeza, eu cometi um sério erro ao não ter acentuado a eficácia conclusiva deles.” HART, H. L. A. O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. p. 325.

[8] PEREIRA, S. Tavares. O processo eletrônico e o princípio da dupla instrumentalidade, p. 1.

[9] Sobre a evolução dos princípios na teorização do Direito ver BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 228-266.

[10] Para mais detalhes sobre a importãncia dos princípios na atual teoria constitucional, remete-se o leitor aos artigos: PEREIRA, S. Tavares; ROESLER, Cláudia Rosane. Princípios, constituição e racionalidade discursiva. Universo Jurídico. Disponível em: <http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/ default.asp¿action =doutrina&coddou=5670>. Acesso em: 26 set. 2008 e MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Hermenêutica principiológica e ponderação de direitos fundamentais: os princípios podem ser equiparados diretamente a valores?. Jus Navigandi, Teresina,           ano 11, nº 1453, 24 jun. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/ doutrina/texto.asp?id=9952>. Acesso em: 07 abr. 2008.

[11] Destaca-se, por todos eles, BOTELHO, Fernando Neto. O processo eletrônico escrutinado – parte VIII. Disponível em: http://www.aliceramos.com/view.asp?materia=1336. Acesso em: 23 set. 2008. O autor cita os princípios da universalidade, da ubiquidade judiciária, da publicidade especial, da economia processual especial, da celeridade especial, da unicidade e uniformidade e da formalidade automatizada. Pela própria nomenclatura vê-se que vários princípios do processo são alcançados pela tecnologia e ganham novos contornos. Ver, também, PEREIRA, S. Tavares. O processo eletrônico e o princípio da dupla instrumentalidade. Esse princípio tem o seguinte enunciado: “Princípio da              dupla instrumentalidade: a tecnologia é instrumento a serviço do instrumento – o processo – e, portanto, sua incorporação deve ser feita resguardando-se os princípios do instrumento e os objetivos a serviço dos quais está posto o instrumento.”

[12] Écio Oto Ramos Duarte situa essa questão ao falar da elucidação (resolução) dos “[…] casos difíceis (hard cases), onde a contraposição das argumentações se situa no âmbito do sopesamento de valores.” DUARTE, Écio Oto Ramos. Teoria do discurso e correção normativa do direito. São Paulo: Landy, 2003. p. 54.

[13] BRASIL. Lei nº 11.419, de 19 de dezembro de 2006, art. 1º, por exemplo.

[14] Termo proposto, pelos motivos expostos no item 7, adiante, para designar a interação digital do SEPAJ com os demais sistemas do mundo circundante. Considerando-se apenas a área tecnologia, seria desnecessário.

[15] Com o sentido atualmente reconhecido aos princípios, como comandos de otimização. Nesse sentido, vejamse: I. Robert Alexy e Garzon Valdes, para quem princípios são comandos de otimização que determinam que se realize algo na maior medida possível, em consonância com as condições jurídicas e reais existentes (ALEXY, Robert; GARZON VALDES, Ernesto. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos Y Constitucionales, 1993, p. 86-87); Ronald Dworkin, que introduziu os princípios na teorização do Direito, para quem eles se associam à dinâmica das ordens jurídicas duradouras, pois as tornam moldáveis;” (DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 488); e ainda, com visões semelhantes, HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luiz Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1998. p. 61 e CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1995. p. 1148-1149. E, ainda, PEREIRA, S. Tavares; ROESLER, Cláudia Rosane. Princípios, Constituição e Racionalidade Discursiva. In: II Mostra de Pesquisa, Extensão e Cultura do CEJURPS e MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Hermenêutica principiológica e ponderação de direitos fundamentais.

[16] RHODE, Deborah L. Access to justice. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 3. Texto original: “[…] is one of America´s most proudly proclaimed and widely violated legal principles. It embellishes courthouse entrances, ceremonial occasions, and constitutional decisions. But […] millions of Americans lack any access to justice […]”.

[17] “No início desta década [1980], esperava-se que Estados Unidos, Alemanha e Japão, países que mais investiram em robótica, possuíssem um total de 250 mil robôs. Mas a população de robôs dos três países não passa de 160 mil unidades; apertando um pouquinho, caberiam no Estádio do Maracanã. O número de robôs cresceu menos do que se previa justamente por causa da falta de habilidade das máquinas em lidar com situações imprevistas, o que desestimulou muitos usuários em potencial.” [sem grifos no original] OLIVEIRA, Lucia Helena de. Doutor robô. Revista Superinteressante, São Paulo, 4. ed, jan. 1988. Disponível em: <http://super.abril.com.br /superarquivo/ 1988/conteudo_111012.shtml>. Acesso em:             04 mar. 2009. Essas limitações continuam muito presentes três décadas depois.

[18] KING Jr., Martin Luther. Disponível em: http://www.thekingcenter.org. Acesso em: 3 fev. 2009.

[19] “LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.” BRASIL. Constituição [1988]. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/Constituiçao.htm. Acesso em 26 set. 2008.

[20] Imaginalização é neologismo proposto para descrever a característica da atual geração de SEPAJ, alimentada prevalentemente por imagens digitais de documentos (escaneadas).

[21] Datificação é neologismo proposto para exprimir o fenômeno da escolha da forma e organização dos dados de entrada dos sistemas. A datificação deve atender aos requisitos esperados em termos de automação  e resultados. A datificação é pertinente quando o dado chega ao SEPAJ em formato imediatamente processável pelo computador.

[22] Tem-se esquecido ainda de envolver profissionais da psicologia e da teoria da comunicação social ou da propaganda e marketing no que tange à sua apresentação aos usuários. Isso porque a mudança com a introdução do SEPAJ é imensa e o tratamento das resistências daí decorrentes, para que o novo produto tenha sucesso, passa pelos conhecimentos dessas duas ciências.

[23] Noções extraídas, dentre outras, da obra GARCIA, Dinio de Santis. Introdução à informática jurídica. São Paulo: Bushatsky, 1976. p. 21-95.

[24] Trabalha-se com a ideia da máxima automação, sem qualquer pretensão da automação integral, pelos inúmeros motivos que a Informática Jurídica esmiuçou nas últimas décadas.

[25] JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo.Dicionário básico de filosofia. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. p. 62.

[26] O conceito operacional de informação depende da área científica de estudo. O conceito dado acima não é o conceito cibernético (conforme GARCIA, Dinio de Santis. Introdução à informática jurídica, p. 48). Ele se presta ao presente trabalho, porque se trata, aqui, basicamente, de sistemas de nformação, e é dado por LAUDON, Kenneth C.; LAUDON, Jane Price. Sistemas de informação. Tradução de Dalton Conde de Alencar. Rio de Janeiro: LTC, 1999. p. 10.

[27] GANDELMAN, Henrique. De Gutenberg à internet. Direitos autorais na era digital. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 21.

[28] Quando se fala na desmaterialização do processo, na verdade dever-se-ia falar na desmaterialização do papel (autos?), pois que o processo – a informação – é toda ela transcrita para outro suporte físico – disco rígido, DVD ou outro dos tantos disponíveis no mercado – de onde pode ser recuperado por um equipamento adequado.

[29] Norte-americano (1894-1964). Aos 15 anos, graduou-se em matemática, aos 18, doutorou-se em filosofia (Harvard), depois estudou epistomelogia e lógica com Bertrand Russell e matemática com G. H. Hardy (Cambridge). Em Goettingen, estudou matemática com Landau e David Hilbert e filosofia com Edmund Husserl. De 1919 até a aposentadoria, em 1960, trabalhou no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts).

[30] GARCIA, Dinio de Santis. Introdução à informática jurídica, p. 21-98. As ideias expostas do pensamento wieneriano, dispostas adiante, neste e no próximo tópico, advêm desta obra.

[31] Isso ocorreu num tempo em que a Ciência do Direito, abandonando as pautas formal-estruturalistas kelsenianas, no pós segunda guerra, buscava novos paradigmas lógicos: a tópica revivida por Theodor Viehweg, a nova retórica proposta por Perelman e toda a evolução posterior na direção das teorias da argumentação jurídica.

[32] O material que tem sido distribuído a respeito, do CSJT, intitulado “Projetos Suap e Malote Digital”, menciona, na página 12, que “documentos digitalizados, encaminhados por petição, serão identificados pelo usuário, com indexação pelo sistema, o que possibilitará a fácil localização no processo.” Melhora-se a recuperação das imagens, pela aposição dos chamados metadados, mas o sistema, neste aspecto, conservará a natureza estoquista. No entanto, no mesmo material há uma promessa de mudança de paradigma pois sua chegada “[…] será acompanhada de uma ‘inteligência’ que elimine a necessidade de intervenção humana em situações possíveis.” (p. 8).

[33] GARCIA, Dinio de Santis. Introdução à Informática jurídica, p. 80.

[34] LEMOS, André L. M.  As estruturas antropológicas do cyberespaço. Disponível em:

<http://www.facom.ufba.br/ pesq/cyber/ lemos/estrcy1.html>. Acesso em: 04 mar. 2009.

[35] LEMOS, André L. M. As estruturas antropológicas do cyberespaço.

[36] LEMOS, André L. M. As estruturas antropológicas do cyberespaço.

[37] Niklas Luhmann (1927-1998) estudou em Harvard com Talcott Parsons, ao tempo em que Nobert Wiener e outros cientistas da teoria da informação firmavam a Cibernética e punham a teoria dos sistemas no centro do palco científico.

[38] LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Trad. De Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1985. 212p.

[39] 40 FEBBRAJO, Alberto. Introduzione all´edizione italiana. In ______. LUHMANN, Niklas. Sistemi sociali. Fondamenti di una teoria generale. Bologna: Mulino, 1990. p. 9-49.

[40] Sobre a Pragmática Sistêmica de Niklas Luhmann, veja-se MONTEIRO, Cláudia Servilha. Teoria da argumentação jurídica e nova retórica. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

[41] FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Apresentação. In ______. LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília:UnB, 1980. p. 1.

[42] LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. De Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: UnB, 1980. p. 9.

[43] Para uma visão geral do pensamento de Talcott Parsons recomenda-se ROCHER, Guy. Talcott Parsons e a sociologia americana. Tradução de Olga Lopes da Cruz. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976. 176p.

[44] FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Apresentação in Legitimação pelo procedimento, p. 1.

[45] LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento, p. 53.

[46] FERRAZ JR, Tercio Sampaio. A ciência do Direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1980. p. 88.

[47] “Até agora deitamos uma vista de olhos aos procedimentos de aplicação jurídica, aos procedimentos para uma decisão programada”, diz Luhmann na abertura da parte III. LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento, p. 117.

[48] LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento, p. 53.

[49] LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento, p. 53.

[50] FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Apresentação in Legitimação pelo procedimento, p. 3.

[51] O procedimento é definido por Luhmann como um sistema. Portanto, estrutura-se pela diferenciação funcional.

[52] As ideias luhmannianas concernentes à autonomia e de que se ocupa este artigo estão expostas no Capítulo II, Parte I – Processos Judiciais, da obra Legitimação pelo procedimento, p. 61-64.

[53] CAPRA, Fritjof. A teia da vida. Uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução de Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2000. p. 76.

[54] Exposição baseada em CAPRA, Fritjof. A teia da vida, p. 87 e seguintes.

[55] CAPRA, Fritjof. A teia da vida, p. 89.

[56] FEBBRAJO, Alberto. Introduzione all´edizione italiana, p. 24.

[57] FEBBRAJO, Alberto. Introduzione all´edizione italiana, p. 24. Texto original: “La loro chiusura è piuttosto la condizione che rende possibile la loro apertura.”

[58] FEBBRAJO, Alberto. Introduzione all´edizione italiana, p. 19. Textos originais: “[…] non si tratta piú del problema della ripetizione, della iterazione difensiva, ma del problema della connessione […] “ e “Si puó anzi dire che il concetto di comunicazione tende non già ad affiancarsi al concetto di funcione ma a sostituirlo come concetto-guida […] “.

[59] LUHMANN, Niklas. Sistemi sociali. Fondamenti di una teoria generale. Tradução para o italiano de Alberto Febbrajo e Reinhard Schmidt. Introdução à edição italiana de Alberto Febbrajo. Bologna: Società editrice il Mulino, 1990. 61. Texto original: “Questo richiede altre tecniche teoriche riguardanti la difendibilità e la capacità di connessione verso l´interno e l´esterno […]”.

[60] LUHMANN, Niklas. Sistemi sociali, p. 73: Texto original: “I sistemi, per consentire tutto ciò, devono produrre e utilizzare uma descrizione di se stessi; essi devono essere capaci di servirsi, all´interno del sistema, dela differenza tra sistema e ambiente come orientamento e come princípio per la produzione di informazioni. […] L´ambiente è un correlato necessário di operazioni autoreferenziali poiché queste operazioni non possono svolgersi sotto lê promesse del solipsismo.”

[61] LUHMANN, Niklas. Sistemi sociali, p. 305-306: Texto original: “Il rapporto com l´ambiente, al contrario, è costitutivo per la formazione dei sistemi; esso nom há semplicemente una rilevanza “accidentale”, in confronto dell´”essenza” del sistema; né l´ambiente é importante esclusivamente per la “conservazione” del sistema, per il rifornimento in energia ed informazione. Nell´ambito della teoria dei sistimi autoreferenziali, l´ambiente costituisce piuttosto il presupposto dell´identità del sistema perché l´identità è possibile soltanto mediante la differenza.”

[62] LUHMANN, Niklas. Sistemi sociali, p. 311. Textos originais: “L´ambiente é una realtà che sussiste in relazione al sistema.” e “[…] L´ambiente comprende una molteplicità di sistemi più o meno complessi che possono entrare in relazione com il sistema del quale costituiscono l´ambiente.”

[63] LUHMANN, Niklas. Sistemi sociali, p. 317. Texto original: “[…] Ogni sistema deve tener conto, entro il proprio ambiente, di altri sistemi.”

[64] LUHMANN, Niklas. Sistemi sociali, p. 312. Textos originais: “La diferrenza fra sistema ed ambiente stabilizza, in altri termini, un dislivello di complessità. Per questa ragione, il rapporto fra sistema ed ambiente è necessariamente asimmetrico. Il dislivello esiste in una sola direzione, e non può essere invertito. Ogni sistema deve infatti affermarsi nei confronti della schiacciante complessità del proprio ambiente.” e “[…] È per questo que lo sviluppo di un sistema mediante defferenziazione può essere descritto anche come […] um incremento simultaneo, dunque, della dipendenza e dell´indipendenza.”

[65] LUHMANN, Niklas. Sistemi sociali, p. 329. Texto original: “Il problema della specificazione dei contatti ambientali […] deve essere considerato um problema centrale di tutti i sistemi complessi […]”.

[66] LUHMANN, Niklas. Sistemi sociali, p. 333. Texto original: “La teoria dei sistemi “aperti all´ambiente”, sviluppata a partire da Ludwig von Bertalanffy, aveva suggerito di descrivere il rapporto dei sistemi com l´esterno ricorrendo al concetti di input e di output. Questo schema concettuale presenta in effetti molti vantaggi.”

[67] Segundo Alan Daniels e Donald Yeates, “[…] in the real world only suboptimizations are performed.” DANIELS, Alan; YEATES, Donald. Systems analysis. Palo Alto: SRA, 1971. p. 242.

[68] ÁVILA, S.J., Fernando Bastos de. Pequena enciclopédia de moral e civismo. Rio de Janeiro: CNME, 1967. p. 42.

[69] Na verdade, as imagens farão parte dos autos processuais, crescentemente. As câmeras que se espalham pelas ruas, edifícios e fábricas, permitem assegurar isso com muita tranquilidade. Daí a formulação do princípio pelo seu segundo enunciado, onde o que se persegue é a pertinência do formato do dado para a obtenção do melhor nível de automação.

[70] Entropia: termo oriundo da termodinâmica, absorvido amplamente pela cibernética e pela teoria dos sistemas e que representa uma propriedade de um conjunto de elementos. Quanto menos se souber sobre eles, mais alta a entropia. Quanto mais informação se tiver sobre eles, menor a entropia. Um amontoado dos documentos de um processo com autos de 10 volumes, escaneados e guardados sobre suporte físico eletromagnético (disco rígido), ainda que com certo nível de indexação para facilitar a recuperação, é um conjunto altamente entrópico e, para fins de processamento automatizato, inútil. Autos assim são uma barreira para a automação.

[71] Ideias encontradas, notadamente, na obra LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento.

[72] Ideias extraídas de LUHMANN, Niklas. Sistemi sociali. Fondamenti di uma teoria generale.

[73] LUHMANN, Niklas. Sistemi sociali, p. 89-90. Texto original: “Il sistema e l´ambiente concorrono sempre alla realizzazione di tutti gli effetti […] Non esistono sistemi senza ambienti o ambienti senza sistemi[…]”.

[74] LUHMANN, Niklas. Sistemi sociali, p. 19.

[75] Nos meios tecnológicos, fala-se, nesse sentido, em engenhos de serialização, desserialização, contracts e, inclusive intraoperabilidade (fluxo num sentido único, de dentro para fora).

[76] Por que não relembrar, aqui, os arts. 11 e 13 da Lei nº 11.419/2006, comentados no item 5 deste artigo.

[77] A análise de sistemas sempre ensinou que qualquer sistema deve ser concebido a partir da análise dos resultados esperados. No caso do processo de conhecimento, por exemplo, esse resultado é “o ato final de julgamento”. Pelo que se tem notícia, esse foi um erro original dos sistemas atuais que agora preocupa os técnicos e, é óbvio, os juízes. O “ato de decidir” está sendo visto como o gargalo dos sistemas. Se se automatiza todo o resto, muito mais rapidamente os processos chegam ao seu ponto culminante. E os juízes terão de decidir em velocidade compatível. Já em 1969, na obra Systems Analysis, Daniels e Yates ensinavam que “A sequência de design é portanto – 1. Saídas (resultados); 2. Entradas (dados); 3. Arquivos;              4. Procedimentos (programa).” [Tradução livre] Texto original: “The design sequence is therefore –                1. Outputs (results); 2. Inputs (data); 3. Files (files); 4. Procedures (program).” DANIELS, Alan; YEATES, Donald. Systems analysis, p. 10.

[78] EATON, John; SMITHERS, Jeremy. Tecnologia da informação, p. 295.

[79] Sobre Hércules, ver DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 285 e seguintes.

[80] ARISTÓTELES. Ética a Nicômcaos. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. p. 46.

 


CAMPO DE INCIDÊNCIA DO ARTIGO 253  DA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO IMPOSSIBILIDADE DE INTEGRAÇÃO ANALÓGICA PARA QUAISQUER AMBIENTES ARTIFICIALMENTE FRIOS

 

Carmen Camino

Advogada – RS

Juíza Aposentada do TRT 4ª R – RS

Professora de Direito do Trabalho da UFRGS

 

 

SUMÁRIO: Introdução; 1. Objeto do artigo 253 e tratamento legal do frio enquanto agente insalubre; 2. Características do trabalho em câmaras frigoríficas; 3. Em síntese.

 

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem por objeto o art. 253 da Consolidação das Leis do Trabalho, mais especificamente, no aspecto da possibilidade, ou não, de sua aplicação analógica às atividades desenvolvidas em ambientes artificialmente frios.

Pautados pela convicção de implicar o mesmo potencial de risco à saúde o trabalho em câmaras frigoríficas e aquele desenvolvido em qualquer ambiente artificialmente frio, os Tribunais do Trabalho têm ampliado, analogicamente, o âmbito de incidência do precitado dispositivo consolidado.

Exemplos dessa orientação jurisprudencial dominante podem ser extraídos das ementas a seguir:

 

LABOR EM AMBIENTE ARTIFICIALMENTE FRIO – INSALUBRIDADE – NEUTRALIZAÇÃO – A neutralização do agente insalubre frio pressupõe o fornecimento de vestimenta adequada e a observância do descanso de vinte minutos a cada uma hora e quarenta minutos de labor, previsto no art. 253 da Consolidação das Leis do Trabalho. Recurso ordinário não provido por maioria. TRT 24ª R, 00340-2006-086-24-00-0 (RO),                  Rel. Nicanor de Araújo Lima.

 

INTERVALO INTRAJORNADA – SERVIÇOS PRESTADOS EM AMBIENTE ARTIFICIALMENTE RESFRIADO – CÔMPUTO NA JORNADA PARA FINS DE CÁLCULO DAS HORAS EXTRAS – 1. O trabalhador que presta serviços em ambiente artificialmente resfriado, com temperatura inferior a 12º C (…) tem direito aos intervalos previstos no art. 253 da CLT. 2. Tais intervalos, segundo a norma legal destacada, são considerados como tempo de efetivo serviço, motivo pelo qual a não usufruição gera direito às horas extras e não apenas ao adicional. 3. Recurso não provido. 4. Decisão unânime, no particular. (TRT 24ª R, 0370/2005-056-24-00-3, Rel. Amaury Rodrigues Pinto Junior)

 

HORAS EXTRAS – AMBIENTE ARTIFICIALMENTE FRIO – INTERVALOS – ART. 253 E PARÁGRAFO ÚNICO DA CLT – O art. 253 da CLT prevê o intervalo de vinte minutos, a cada uma hora e quarenta minutos de labor contínuo, para os empregados que trabalham no interior de câmara frigorífica ou para os que movimentam mercadorias do ambiente quente ou normal para o frio e vice-versa. A constatação de trabalho em condições que se enquadram nos mínimos a que alude a lei, de manifesta insalubridade e óbvia nocividade à saúde, recomenda a concessão dos intervalos em questão, de vez que presentes os requisitos previstos pelo legislador. Vale ressaltar que as situações previstas na norma não são cumulativas, incidindo o seu conteúdo quer quando há ambiente artificialmente frio, quer quando há percurso entre ambientes frios e quentes. Recurso de revista não conhecido. (TST, 3ª T, Processo RR-719679/2000.5, Rel. Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, DOU/DJ 06.02.2004)

 

Possivelmente diante da sua especificidade, a matéria pertinente à fattispecie contemplada no art. 253 e à possibilidade de estender a respectiva disciplina a outras condições de trabalho tidas como assemelhadas não tem merecido atenção da doutrina.

Fomos desafiada a enfrentá-la, ao nos depararmos, recentemente, na condição de advogada, com caso concreto de empresa dedicada ao ramo da indústria de beneficiamento de carnes, em cuja unidade industrial, além das câmaras frigoríficas, onde os empregados ali exercem as atividades de estocagem e acondicionamento dos produtos, há outros setores obrigatoriamente mantidos sob temperatura artificialmente fria, por razões higiênicas, conforme normas estabelecidas pelas autoridades sanitárias: a Salas de Desossa e de Corte, nas quais os empregados procedem ao desossamento, ao corte e à classificação dos cortes dos animais abatidos, matéria prima altamente perecível. Essas salas, como restou demonstrado na prova pericial existente              nos autos, são espaços amplos, bem iluminados, adequadamente ventilados e dotados de complexo sistema mecânico de esteiras, que possibilita a movimentação das aves abatidas para a respectiva classificação, dessossamento, corte e distribuição dos cortes para as etapas seguintes da industrialização, em típico regime fordista  de produção.

A referida empresa foi instada, pela Fiscalização do Trabalho, a conceder, a exemplo do procedimento por ela adotado em relação aos empregados que trabalham nas câmaras frigoríficas, o repouso de 20 minutos a cada 1h40min. de labor. O fundamento constante da autuação foi o art. 253 da CLT, tido como aplicável analogicamente aos empregados das salas de corte. O elo analógico residiu no que as câmaras frigoríficas e as salas de corte e desossa têm em comum: a temperatura ambiente artificialmente fria, tida como danosa à saúde. Do processo administrativo no âmbito da Fiscalização do Trabalho resultou ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho, com vista a compelir a empresa a adotar a jornada intermitente, com concessão dos intervalos previstos no art. 253 da CLT a todos os empregados que trabalham nas salas de corte e desossa, sob os mesmos fundamentos.[1]

Para o fim de contestar a ação, dedicamo-nos ao estudo da matéria e, a par de termos encontrado argumentos hábeis ao manejo da defesa de nossa cliente nos autos do processo, dali retiramos segura convicção acerca do equívoco em que têm incorrido os defensores da tese atualmente predominante nos Tribunais do Trabalho.

Pela relevância do tema no presente momento, em que pendem de julgamento definitivo, no Tribunal Superior do Trabalho, várias ações civis públicas com idêntico objeto, propostas contra empresas dedicadas à indústria de beneficiamento de matéria prima animal, entendemos oportuno dividir nossas reflexões com o prezado leitor.

As questões trazidas à reflexão implicam buscar respostas para as seguintes perguntas:

a) Será, efetivamente, a insalubridade decorrente do contato com o frio, o elo analógico entre os suportes fáticos em estudo?

b) Qual o fundamento científico do art. 253 da CLT?

c) As normas estabelecidas na CLT para o trabalho em câmaras frigoríficas estão sistematizadas em torno do trabalho insalubre?

d) Há, efetivamente, similitude entre o suporte fático do art. 253 e as condições de trabalho em outros ambientes artificialmente frios, como salas de desossa, salas de corte ou outros setores próprios às indústrias de beneficiamento de carnes, de leite ou outras matérias primas altamente perecíveis?

É o que nos propomos a discutir nos tópicos seguintes, partindo de pressuposto indispensável, sem o qual as conclusões aqui expressas tornam-se totalmente insubsistentes: os empregados devem estar adequadamente protegidos do frio, com agasalhos e equipamentos de proteção individual devidamente certificados quanto à sua eficácia e validade pela autoridade competente.

1. OBJETO DO ARTIGO 253 E TRATAMENTO LEGAL DO FRIO ENQUANTO AGENTE INSALUBRE

1.1 O art. 253 da CLT consagra, para os empregados que trabalham em câmaras frigoríficas e para aqueles que transportam mercadorias de ambientes com temperatura natural para ambientes artificialmente frios e vice-versa, jornada intermitente, entremeada de repousos remunerados de 20min a cada 1h40min de labor.

Para os fins deste estudo, nosso foco principal dirige-se para aqueles trabalhadores que exercem atividades em ambientes artificialmente frios sem se submeterem a variações abruptas de temperatura, por ali permanecerem durante toda sua jornada, como ocorre nas salas de desossa e de corte das indústrias de alimentos em geral, de beneficiamento de carnes, de laticínios, assim como em outras atividades que exigem ambiente refrigerado.

Havendo, em comum às câmaras frigoríficas e às salas de corte e desossa, o elemento “frio”, a questão a ser enfrentada, inicialmente, reside em definir se é nesse elemento nocivo à saúde que reside o fundamento do art. 253.

A CLT não define nem classifica os agentes insalubres. O legislador atribuiu ao Ministério do Trabalho a competência para estabelecer o quadro das atividades e operações insalubres, adotar critérios de caracterização da insalubridade, fixar limites de tolerância dos agentes insalubres, dispor sobre os meios de proteção e do tempo máximo de exposição (art. 190). O Ministério do Trabalho desincumbe-se de tal competência na Portaria 3.214/78, que consolida as Normas Regulamentadoras, não só em relação aos aspectos da higiene, como, também, da segurança e do conforto do trabalho.

A Norma Regulamentadora (NR) nº 15, Anexo 9, da Portaria 3.214/78 cogita da insalubridade decorrente da exposição ao frio “sem proteção adequada”, abstendo-se de especificar atividades. Ou seja, trata do frio enquanto potencial agente insalubre, independentemente do que faz ou onde trabalha o empregado.

Cumpre, diante do art. 253 da CLT, avaliar se é cientificamente correto relacionar a exposição ao frio com a exigência de trabalho intermitente. Mais especificamente, terá sido essa, verdadeiramente, a fonte material da norma contida no art. 253 da CLT?

A jurisprudência inclina-se por essa linha e tem adotado o pressuposto da insalubridade do trabalho com exposição ao frio, forte no Anexo 9 da NR-15, quando cogita do trabalho nas câmaras frigoríficas e em outros locais que apresentem “condições similares”, daí a extensão analógica do art. 253 da CLT para qualquer espécie de trabalho, em qualquer espécie de local, desde que sob frio artificial inferior aos limites estabelecidos no respectivo parágrafo único[2], ou que obrigue o empregado a se expor alternadamente a variações abruptas de temperaturas.

Não se cogita, contudo, de indagar sobre as razões que levaram o legislador a restringir a obrigatoriedade de jornada intermitente (1h40min de labor x 20min de repouso remunerado) apenas para o trabalho no interior de câmaras frias ou de transporte de mercadorias de ambientes frios para ambientes “quentes ou normais”, ou vice-versa, sem estendê-la a outros locais em que o frio também se faz presente.  A par disso, se a insalubridade decorrente da exposição ao frio constitui, efetivamente, o mote informador do art. 253 da CLT, surgem algumas questões:

• O Anexo 9 define como insalubre o trabalho sob o frio quando realizado “sem a proteção adequada”, deixando implícito que, a contrario sensu, quando adequadamente protegido, o empregado, o trabalho é inócuo à saúde.

• O art. 253, quando neutralizada a ação nociva do frio pelo uso de agasalhos adequados por parte do empregado, careceria de suporte fático?

• O Anexo 9 da NR-15 não contempla a variação de temperaturas (frio => quente => frio => quente) para caracterizar insalubridade, enquanto essa variação integra a fattispecie do art. 253.

Um critério de investigação pode ser reputado científico quando, submetido a diversas variáveis, a conclusão dele resultante é sempre a mesma. Embora, nas ciências humanas e sociais, não se exija dos critérios de investigação a mesma rigidez das ciências exatas, é pacífico que, ao menos, no plano da coerência, essa verdade seja capaz de suportar diversas variáveis.

No caso em estudo, o critério de investigação fundado unicamente na insalubridade do frio não suporta, a nosso sentir, estudo mais acurado.

Primeiro, porque o trabalho insalubre em face do frio não se reveste de morbidade absoluta. O frio é insalubre apenas nos casos de exposição “sem proteção adequada”.[3] Logo, o legislador deixou aberta a possibilidade do trabalhador exposto ao frio estar adequadamente dele protegido e tanto isso é verdadeiro que em seu art. 191, a própria Consolidação dispõe:

 

“Artigo 191. A eliminação ou neutralização da insalubridade ocorrerá:

I – com a adoção de medidas que conservem o ambiente de trabalho dentro dos limites de tolerância;

II – com a utilização de equipamentos de proteção individual do trabalhador que diminuam a intensidade do agente agressivo a limites de tolerância.”

 

Atente-se que o legislador não cogita, apenas, de eliminação do agente insalubre, mas, também da sua “neutralização”, quer dizer, mantida a fonte geradora da insalubridade, há como neutralizar seus efeitos. O frio amolda-se a essa segunda espécie: potencialmente, é insalubre e, em muitas atividades, não pode ser eliminado, mas seus efeitos podem ser afastados. Estando, o empregado, adequadamente protegido, “neutraliza-se” a insalubridade, como expresso no art. 191 da CLT, e o trabalho, potencialmente insalubre, deixa de sê-lo.

Segundo, porque a norma do art. 253 não cogita de exceções: o trabalho em câmara frigorífica pressupõe jornada intermitente, o que nos leva a concluir que o empregado devidamente protegido do frio, neutralizada a insalubridade, não deixa de ter direito ao gozo dos múltiplos intervalos no curso de sua jornada, levando-nos a insuperável contradição da ordem legal: na câmara frigorífica, é possível neutralizar o efeito nocivo do frio se o empregado estiver devidamente protegido por vestimenta especial, mas a jornada intermitente será mantida em face da ação (supostamente nociva) do frio.

Tal contradição somente seria superada se, diante da proteção neutralizadora  do frio, deixasse de existir o direito do empregado aos vários intervalos intrajornada. E, inquestionavelmente, ele continua a tê-lo.

E por que o tem?

Que razão é determinante do direito do empregado que labora em câmaras frigoríficas, ainda que devidamente neutralizada a ação danosa do agente insalubre (frio) pelos equipamentos de proteção, ao gozo de um intervalo de 20min a cada 1h40min de atividade?

Uma das máximas colhidas em todas as boas obras de metodologia do estudo jurídico recomenda ao interprete jamais buscar a compreensão da norma divorciada do seu contexto.

Logo, compreender o sentido da norma implica identificar em que sistema legal ela se integra e interpretá-la logicamente, à luz desse sistema.

1.2 A Consolidação das Leis do Trabalho, tão acossada pelas apressadas críticas em face da sua apregoada deficiência técnico-legislativa, constitui extraordinário e complexo ordenamento positivado em busca do equilíbrio das relações entre capital e trabalho: atribui ao empregador o poder diretivo porque lhe impõe com exclusividade o risco do negócio (art. 2º); porque reconhece e legitima o poder diretivo do empregador, protege o empregado, parte vulnerável nas relações individuais; delineia claramente as condições essenciais do contrato de trabalho (arts. 447, 456, parágrafo único, 460), protegendo-as de alteração lesiva (art. 468), mas, deixa aberto o espaço do jus variandi do empregador, em relação às condições gerais do contrato, na dinâmica da empresa.

Em minuciosa disciplina, consagra, no contrato mínimo, os sistemas da duração e da remuneração do trabalho e, ao arrepio da vontade dos sujeitos contratantes, define as condições especiais nos aspectos da segurança, da higiene e do conforto do trabalho; ocupa-se das normas gerais de proteção para, então, descer às normas especiais, voltadas às especificidades de cada profissão ou do trabalho em determinados locais ou com determinadas peculiaridades.

Trazendo ao tema em estudo, as normas de proteção no campo da medicina e segurança do trabalho estão organizadas nas Normas Gerais de Tutela do Trabalho (Título II). O respectivo Capítulo V sistematiza os aspectos de segurança e medicina do trabalho para todo o universo dos trabalhadores, independentemente do tipo de trabalho que exercem, do local em que o exercem e a sua duração.

Da própria organização sistemática do Título II da CLT, vislumbram-se                 sub-divisões que, claramente, demonstram os critérios que presidiram as disposições sobre a proteção do trabalhador frente às condições ambientais do trabalho: a Secção I estabelece as normas gerais; a Secção II põe em foco os aspectos relativos às medidas orientadoras da inspeção dos estabelecimentos. Das instalações físicas das empresas, preocupa-se, a Secção VI. Com as edificações, a Secção XI. As máquinas e equipamentos são objeto da Secção XI. As caldeiras, fornos e recipientes sob pressão, estão na Secção XII, etc. As atividades insalubres e perigosas estão contempladas, em suas linhas gerais, na Secção XIII (arts. 189 a 197).

Em relação às atividades penosas, a CLT não dedica capítulo nominadamente expresso para sua regulamentação, não as define, como o faz em relação às atividades insalubres (art. 189) ou perigosas (art. 193), nem estabelece, no aspecto da remuneração, adicionais salariais qualificados como “de penosidade”.[4] Delas se ocupa especificamente, no próprio Título II, Capítulo V, quando estabelece disposições acerca da iluminação (art. 175), do conformo térmico (arts. 176//178), da prevenção à fatiga (arts. 198/199), matérias não, necessariamente, atreladas ao trabalho insalubre ou perigoso, mas próprias ao trabalho confortável, cuja antítese é o trabalho penoso.

O art. 253 da CLT situa-se no elenco das Normas Especiais de Tutela do Trabalho (Título III), em seu Capítulo I – Das Disposições Especiais sobre Duração e Condições de Trabalho (Secção VII), a exemplo da expressiva maioria das atividades caracteristicamente penosas.

Este estudo do estatuto consolidado mostra que as atividades penosas merecem tratamento sob vários enfoques e essa preocupação extravasa o âmbito da CLT para tomar o nobre espaço da Constituição. No enfoque da contraprestação do trabalho penoso, a respectiva remuneração constitui garantia fundamental (art. 7º, inciso XXIII). O trabalho noturno, naturalmente penoso, exige remuneração especial (art. 7º, inciso IX cc/art. 73 da CLT). O trabalho extraordinário, também naturalmente penoso, tem motivações e limites precisos (art. 61, CLT, art. 7º, XIII, CF) e supõe contraprestação superior (art. 7º, inciso XVI). Mesma preocupação transparece na Lei 5.889/73, quando disciplina o adicional noturno para os trabalhadores rurais. O próprio adicional de transferência, devido ao trabalhador chamado a atender a necessidade circunstancial de serviço em local diverso daquele em que, normalmente, tem sua vida familiar e social estruturada, tem esse escopo de retribuir, transitoriamente, enquanto perdurar a situação de transferência, a penosidade própria ao trabalho realizado fora do domicílio do empregado (art. 469, § 3º, CLT).

No aspecto da duração do trabalho, a penosidade merece especial atenção do legislador, em busca, de reduzi-la, com o fito de permitir ao empregado menos quantidade de labor: o trabalho noturno tem jornada reduzida pela ficção da “hora noturna” (art. 73, § 2º, CLT); exemplificativamente, os telefonistas, os bancários e os trabalhadores em minas de subsolo têm jornada especial de 6h (arts. 224, 227 293),            o mesmo ocorrendo com os empregados submetidos a turnos ininterruptos de revezamento (art. 7º, inciso XV, da Constituição).

Ainda a respeito da jornada, outro critério utilizado pelo legislador reside na

instituição do trabalho intermitente, em que, embora disponível para o empregador durante toda a jornada, o empregado goza, entre determinados períodos de labor, de pequenos repousos remunerados. Assim ocorre, por exemplo, com os mecanógrafos (art. 72 da CLT), com os trabalhadores em minas de subsolo (art. 298 da CLT) e com os médicos (art. 8º, § 1º, Lei 3.999/61).

Essas disposições especiais, também contempladas difusamente na CLT,            estão concentradas no corpo sistematizado do Título III da CLT, no qual albergado o art. 253, ou, como no caso dos médicos, em legislação específica da profissão.

Daí a primeira conclusão vazada no sistema consolidado: fosse, a insalubridade do trabalho, o objeto da atenção do legislador no aspecto dos serviços nas câmaras frigoríficas, a regra do art. 253 estaria no elenco das disposições sistematizadas no Capítulo V – Da Segurança e Medicina do Trabalho, especificamente, na respectiva Secção XIII – Das Atividades Insalubres e Perigosas.

1.3 O art. 253 não é norma contextualizada no campo da higiene e da segurança do trabalho, mas, na ordem das normas especiais de tutela do trabalho, cujo foco reside nas especificidades de algumas atividades desenvolvidas, sob vários aspectos (penosidade, complexidade, especialidade, potencialidade de aquisição de doenças ocupacionais, etc.), e não nas condições insalubres. Dentre esses aspectos considerados pelo legislador, no Título III da Consolidação, para prestar tutela específica a determinadas atividades, avulta a penosidade e, sem dúvida, é a penosidade que informa a preocupação especial do trabalho em câmaras frigoríficas.

O trabalho em câmaras frigoríficas é sempre penoso e, consequentemente, danoso ao empregado, independentemente de ser ou não ser insalubre. Será também insalubre quando o empregado estiver exposto a outro agente ali eventualmente ativo, inclusive o frio quando “sem a proteção adequada” (NR-15, Anexo 9, Portaria 3214).

Há, ainda, outros aspectos que tornam o trabalho em tais equipamentos altamente prejudicial ao trabalhador, daí a pertinência de algumas considerações em torno das características físicas de uma câmara frigorífica, integrada no respectivo suporte fático, e de outras múltiplas atividades em ambiente frio, nele não contempladas.

2. CARACTERÍSTICAS DO TRABALHO EM CÂMARAS FRIGORÍFICAS

2.1 O legislador cuidou de amenizar a penosidade e a insalubridade do trabalho no interior das câmaras frias e no transporte de mercadorias em variações extremas de temperatura por razões técnicas específicas.

É intuitiva a percepção da penosidade do trabalho em tais condições.                    Esse verdadeiro “sentimento” de trabalho penoso, apreendido da constatação leiga, coincide com a abordagem técnica desse importante aspecto do trabalho.

Câmaras frigoríficas foram idealizadas para armazenamento de produtos perecíveis sujeitos a rápida deterioração em temperaturas acima daquelas indispensáveis à sua conservação e, ainda assim, por determinado tempo. Caracterizam-se como espaço físico adequado ao condicionamento desses produtos com o fim de evitar ou reduzir as reações químicas e biológicas que neles se processam naturalmente e, assim, preservar o seu grau de qualidade ideal para o consumo.

Para a conservação da temperatura ideal aos fins da sua utilização, as câmaras frigoríficas têm como pressuposto necessário e indispensável o confinamento ambiental, ou seja, são equipadas para impedir ao máximo a ação de agentes externos, especialmente, a temperatura. Logo, o trabalho em câmaras frigoríficas é realizado em “espaço confinado”. [5]

A NR-33, de 22.12.2006, disciplina os aspectos do trabalho em espaços confinados, tendo por objetivo estabelecer os requisitos mínimos para a sua identificação. Em seu item 33.1.2, define:

 

Espaço confinado é qualquer área ou ambiente não projetado para ocupação humana contínua, que possua meios limitados de entrada e saída, cuja ventilação existente é insuficiente para remover contaminantes ou onde possa existir a deficiência ou enriquecimento de oxigênio.

 

Logo, um espaço confinado:

• não é adequado ao trabalho humano contínuo;

• caracteriza-se por meios limitados de entrada e saída de pessoas;

• é dotado de ventilação insuficiente;

• é deficiente quanto à oxigenação.

Óbvio concluir que no interior de tais equipamentos não há lugar para a natural interação entre as pessoas, o espaço de movimentação é restrito e a necessidade de deles sair frequentemente é imperativa porque a circulação de ar apropriado ao ser humano é deficiente e porque o confinamento gera estresse progressivo caso se prolongue por períodos significativos.

Imaginemos o trabalho confinado, mas em condições de temperatura ambiente. Deixaria, ele, de ser penoso e danoso à saúde do empregado? Claro que não, porque não é o frio o fator determinante da penosidade e do dano, mas o confinamento.                Daí a razão pela qual os mineiros de subsolo também têm jornadas intermitentes             (15 minutos a cada 3 horas, art. 298 da CLT), embora não estejam expostos ao frio.

No mundo ideal, não deveria existir trabalho humano no interior de câmaras frigoríficas, nem de minas de subsolo.

No mundo real, contudo, esse trabalho ainda é absolutamente indispensável.

Como, então, compatibilizar essa necessidade do mundo real, sem expor o trabalhador a labor excessivamente penoso e/ou danoso?

No aspecto da prevenção à saúde do trabalhador conjugam-se os esforços à           luz da legislação consolidada e das normas regulamentadoras do trabalho insalubre. Os atuais recursos tecnológicos permitem a confecção de equipamentos adequados à proteção do empregado em relação ao frio. Logo, o frio deixa de ser o elemento inadequado para o trabalho humano. Estando agasalhado, o trabalhador está protegido da ação insalubre do frio, mas o agasalho não torna seu trabalho menos penoso, nem torna o trabalhador infenso aos efeitos mórbidos da pouca ventilação, do oxigênio rarefeito, do ambiente lúgubre e estressante porque persiste o confinamento com todas as suas características danosas. Logo, mesmo sendo em condições resguardadas do frio (porque o agasalho adequado neutraliza a insalubridade dele decorrente), há condições penosas e insalubres de trabalho. No primeiro caso, porque a penosidade é inerente. No segundo porque o ambiente confinado, pouco ventilado e carente de oxigenação adequada potencializa a ação de agentes químicos e biológicos nocivos à saúde do empregador.

Em relação essas condições, o legislador idealizou, como forma de minimizá-las ou até nulificá-las, a intermitência do trabalho no curso da jornada, em períodos mais numerosos do que aqueles estabelecidos no art. 71 da CLT, disciplinadores do trabalho em condições normais. O trabalho em situação de grande desconforto e de ambiente físico danoso, ou determina jornada especial (inferior à jornada comum), ou determina a concessão de lapsos no curso da jornada que permitam ao empregado afastar-se                do local de trabalho sem prejuízo do salário, portanto, típicas espécies de “execução reduzida” do contrato de trabalho[6] (repousos remunerados) e não de intervalos configuradores de “execução negativa”[7] do contrato de trabalho.

Em face das peculiaridades do confinamento, o trabalho no interior de câmaras frigoríficas determina jornada intermitente, com o contrato, ora em plena “execução positiva” (1h40min), ora em “execução reduzida”[8] (20min). Esses 20 minutos de repouso permitem ao empregado sair do interior das câmaras, retemperar suas forças e atenuar a fadiga física e o estresse emocional do trabalho confinado.

Se intercalados adequadamente os espaços de labor (1h40min) com os espaços de repouso fora das câmaras frias (20min), o trabalho penoso fica significativamente atenuado porque o empregado retempera, tanto suas forças físicas, como, principalmente, sua higidez psicológica. Minimiza-se o dano. Atenua-se, significativamente, a ação mórbida do ambiente viciado pela falta de ventilação e oxigenação, porque o empregado ali permanece em tempo limitado.

Logo, é perfeita a adequação das condições de trabalho nas câmaras frigoríficas e o art. 253 da CLT.

2.2 Nos demais espaços em que, afora a baixa temperatura, em nada se distinguem de um local de trabalho comum, qual seria a razão para o trabalho intermitente?

Em tais espaços não há:

• inadequação ao trabalho humano contínuo, desde que devidamente protegido, o trabalhador, contra o frio, com neutralização de seus efeitos nocivos;

• limitação aos meios de entrada e saída;

• ventilação insuficiente;

• deficiência de oxigenação.

Até porque a natureza do trabalho de desossa, corte e classificação dos cortes assim o exige – tais espaços são amplos e iluminados, neles vários trabalhadores atuam ordenadamente e circulam em perfeita interação uns com os outros. A circulação do ar e sua renovação são normais, tendo, apenas, em comum com as câmaras frigoríficas, a baixa temperatura. Em síntese, os elementos específicos de fadiga física e do estresse psíquico, inafastáveis no trabalho em câmaras frigoríficas, não atuam com a mesma intensidade nesses espaços.

Os empregados das salas de corte e de desossa afastam-se de suas bancadas de trabalho, apenas, no intervalo regular para repouso e alimentação (art. 71 da CLT) ou para atendimento de alguma necessidade circunstancial. Logo, o segundo fator contemplado na fattispecie do art. 253 (exposição alternada a variações bruscas de temperaturas) também não se faz presente. Ao contrário, se adotada a jornada intermitente preconizada no art. 253, estará caracterizada a situação de risco pela exposição sistemática a bruscas variações de temperatura. Explica-se: os intervalos de 20 min a cada 1h40min de trabalho, em se tratando de câmaras frigoríficas, destinam-se a neutralizar os efeitos nocivos do confinamento e da exposição às variações “frio-quente” às quais submetidos os empregados que continuamente entram e saem das câmaras frigoríficas no transporte de mercadorias. Nos locais apenas frios, em que os empregados não estão sob confinamento, nem fazem transporte de mercadorias, impor intervalos a cada 1h40min de labor sujeita-os, ainda que em dimensão menos significativa, aos mesmos riscos da exposição a variações bruscas de temperaturas.

Esses aspectos, se adotado o rigor metodológico de investigação que deve presidir a espécie, afastam a aplicação analógica do art. 253 da CLT para todo trabalho sob o frio. O recurso à analogia, no caso, não tem sustentação científica porque o trabalho em câmaras frigoríficas, caracterizado pelo confinamento, não é análogo ao trabalho em outros ambientes artificialmente frios, onde não há confinamento. Da mesma forma, não há como estabelecer relação analógica entre empregados que transportam, continuamente, mercadorias das câmaras frigoríficas para o espaço exterior e vice-versa e aqueles empregados que, embora sob o frio, não estão em espaço confinado, nem fazem transporte de mercadorias. São intrinsecamente distintos – logo, não análogos – os suportes fáticos, residindo, no confinamento,          que torna o ambiente das câmaras frigoríficas impróprio para o trabalho humano “contínuo” (NR-33), ou na variação contínua de ambiente frio e ambiente natural (“quente”), os traços diferenciadores das salas de corte e de desossa, nas quais inexistentes esses fatores.

3. EM SÍNTESE

Submetida a crivo mais rigoroso, a tese da aplicação analógica do art. 253 da CLT a qualquer ambiente artificialmente frio não tem sustentação científica. Embora o frio artificial constitua um dos elementos comuns entre as câmaras frigoríficas e as salas de corte, de desossa ou outros ambientes mantidos sob temperaturas artificialmente refrigeradas, aquelas têm como característica o confinamento, que não está presente nos demais locais. Também não está presente o segundo elemento fático apto a atrair a incidência do art. 253, consubstanciado na permanente variação de temperaturas às quais submetidos os transportadores de mercadorias do exterior para o interior das mesmas câmaras, ou vice-versa.

O frio é agente insalubre potencial porque a sua ação danosa pode ser neutralizada pelo uso de proteção adequada. O espaço confinado não possibilita a neutralização de sua ação danosa através de nenhum equipamento de proteção: é deficiente quanto à circulação, ventilação e oxigenação porque essas características, além da baixa temperatura, constituem elementos tecnicamente indispensáveis à conservação dos produtos perecíveis. São, justamente, essas características próprias às câmaras frigoríficas – e não o frio – que determinam a necessidade de jornada intermitente, única forma de neutralizar sua ação morbígena, para que o empregado se retempere psíquica e fisicamente.

A partir de mera constatação empírica, é claro que, no confinamento da câmara frigorífica, o frio potencializa sua ação sobre o empregado, porque ali ele tem pouca mobilidade, dificuldade inexistente nas salas de corte e de desossa nas quais, pelo fluxo contínuo das esteiras, há constante e intensa movimentação de todos os operários. Logo, o frio destes ambientes não age com a mesma intensidade daquela sentida no interior de uma câmara frigorífica.

Por fim, enquanto o frio pode ser elidido por agasalhos adequados, o confinamento e seus aspectos perniciosos é intrínseco às câmaras frias e determina a potencialização de outros agentes insalubres eventualmente existentes no espaço confinado. Logo, a câmara frigorífica determina trabalho, não apenas revestido de altíssima penosidade, como de insalubridade, mas não em face do frio.

Essa a razão pela qual o legislador extremou as câmaras frigoríficas em norma especial de tutela, ao contrário da atividade insalubre contemplada nas normas gerais. É a especialidade do confinamento – e não este ou aquele agente insalubre que ali possa existir e até se tornar potencialmente muito mais ativo – que determina a jornada intermitente.

Evidente – sem temor de destacar o óbvio – que trabalhar em qualquer ambiente artificialmente frio sem proteção adequada, seja em que local for, expõe o empregado a risco iminente de contrair doenças graves, além de tornar o trabalho extremamente penoso. Se tal ocorrer em espaços confinados como o das câmaras frigoríficas, o trabalho torna-se insuportável e pode levar a consequências fatais. Não cogitamos dessa hipótese nessas reflexões. Partimos do pressuposto de estarem, os empregados, adequadamente protegidos do frio.

Esses aspectos, a nosso ver, devem ser ponderados sempre que se pretender, de forma simplista, estender para qualquer ambiente artificialmente frio a norma prevista no art. 253 da CLT, idealizada a partir de características peculiares das câmaras frigoríficas, especialmente o confinamento, inexistente nos demais ambientes.


[1] Processo nº 00724-2008-021-24-00-9 – Vara do Trabalho de Dourados, Mato Grosso do Sul. A ação foi julgada procedente em primeiro grau de jurisdição, em cuja sentença a empresa restou condenada a conceder os intervalos de 20 minutos a cada 1h40min. de labor, com fundamento no art. 253 da CLT, confirmada pelo TRT da 24ª Região. Da decisão do Tribunal Regional foi interposto recurso de revista perante o TST, ainda pendente de julgamento.

[2] O conceito de “frio” varia conforme a sensibilidade a baixas temperaturas nas diversas regiões do planeta.              O Brasil, diante de suas dimensões continentais, envolve várias zonas climáticas que determinam, também, variados conceitos de frio. No Rio Grande do Sul, especialmente nas zonas da Serra, Campos de Cima da Serra, Campanha e Planalto Médio, temperaturas de 10º não chegam a causar, sequer, queixa de desconforto. Trabalha-se normalmente sob essas temperaturas. Para os nordestinos e nortistas, temperaturas nesse patamar são insuportáveis. Atento a essas diversidades, o legislador estabeleceu, no parágrafo único, do art. 253, patamares de temperaturas mínimas diferenciados. Dando efetividade ao parágrafo único do art. 253, MTE baixou a Portaria 21, de 26.12.1994, cujo art. 1º assim dispõe: O mapa oficial do Ministério do Trabalho, a que se refere o art. 253 da CLT, a ser considerado é o mapa “Brasil Climas” – da Fundação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE da SEPLAN, publicado no ano de 1978 e que define as zonas climáticas brasileiras de acordo com a temperatura média anual, a média anual de meses secos e o tipo de vegetação natural. Em seu art. 2º, a mesma Portaria assim dispõe: Para atender ao disposto no parágrafo único do art. 253 da CLT, define-se como primeira, segunda e terceira zonas climáticas do mapa oficial do MTb, a zona quente, a quarta zona como zona climática subquente, e a quinta, sexta e sétima zonas, como a zona climática mesotérmica (branda ou mediana) do mapa referido no art. 1º desta Portaria”. Exemplificativamente, o patamar conceitual de frio, para o Rio Grande do Sul, é 10º. Em Pernambuco, é 15º.

[3] Assim entendida aquela feita através de equipamentos de proteção individual devidamente certificados pelo Ministério do Trabalho.

[4] A Constituição refere-se, contudo, a tais adicionais ao garantir “adicional de remuneração para as atividades penosas, além das insalubres e perigosas (art. 7º, XXIII).

[5] Nosso agradecimento ao Engenheiro do Trabalho, Luis Fernando Osório Junior, cujos subsídios técnicos foram preciosos à formação de nosso convencimento.

[6] CATHARINO, José Martins. Compêndio de Direito do Trabalho. 2. ed. Vol. II. São Paulo: Saraiva, 1981,  p. 167 e seguintes

[7] Idem

[8] Ibidem


ARTIGO 114 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL CINCO ANOS DA COMPETÊNCIA AMPLIADA DA JUSTIÇA DO TRABALHO*

 

Luciana Bohm Stahnke

Juiza do Trabalho do TRT 4ª R – RS

Ricardo Carvalho Fraga

Desembargador Federal do Trabalho do TRT 4ª R – RS

 

 

SUMÁRIO: Introdução; 1. Resistência dos Tribunais Superiores e Jurisprudência Atual;          2. Acidentes de Trabalho; 3. Servidores e Trabalhadores em Entes Públicos;  Conclusão.

 

INTRODUÇÃO

Mais de quinhentos profissionais estiveram reunidos para avaliar a ampliação da competência da Justiça do Trabalho, na metade de abril deste ano de 2009, na cidade de Belo Horizonte. Eram juízes, advogados, procuradores, peritos e estudantes.

Já se passam mais de quatro anos da reforma do Poder Judiciário, implementada com a Emenda Constitucional nº 45, de dezembro de 2004. Não ocorreu o soterramento da Justiça do Trabalho, com uma avalanche de processos, como anunciavam os mais pessimistas, os quais não eram poucos naqueles momentos iniciais.

O acréscimo anual de processos na Justiça do Trabalho tem sido bastante inferior a dez por cento. Os números atuais são menores daqueles dos anos de 1996 a 1998, quando ocorreram mais despedidas e consequentes ajuizamentos de reclamatórias. Aliás, destacou o Procurador do Trabalho Fábio Leal que, segundo dados do CNJ do ano de 2007, a Justiça do Trabalho possui a menor taxa de congestionamento.

O Juiz de Direito Alexandre Morais da Rosa, autor de vários livros sobre economia e o novo constitucionalismo[1], entre outros tantos palestrantes, registrou sua convicção na construção de novos patamares de solidariedade e cumprimento dos princípios inscritos na Constituição de 1988.

Algumas das palestras e painéis estão registradas no sítio da ANAMATRA, www.anamatra.org.br e já foi anunciada a publicação dos anais do relevante evento. Desde já, são oportunas algumas lembranças dos belos aprendizados daquele momento, destacando-se os assuntos mais polêmicos, sobre as quais a jurisprudência ainda vem se pacificando.

1. RESISTÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES E JURISPRUDÊNCIA ATUAL

A ampliação da competência da Justiça do Trabalho, apesar dos já quase cinco anos, ainda não foi assimilada totalmente pelos tribunais superiores, notadamente o Superior Tribunal de Justiça. Frequentemente são utilizados argumentos em desacordo com a Emenda Constitucional nº 45 e, inclusive, o que é mais grave, em desarmonia com o próprio texto original da Constituição de 1988. Nota-se, inclusive, a ausência de um “olhar” constitucional em parte da jurisprudência dos tribunais superiores.              O Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Maurício José Godinho Delgado, destacou em sua manifestação que atualmente nos deparamos com inúmeras normas jurídicas que não tem pertinência com o texto constitucional, ou seja, não foram recepcionadas pela Constituição.

Wolney de Macedo Cordeiro, Juiz do Trabalho da 13ª Região e Professor, bem apontou algumas incompreensões de certos julgamentos, ressaltando as divergências entre os tribunais superiores, notadamente ente o STJ e TST. Ressaltou as incongruências dos julgados com suporte no inciso I do art. 114 da CF, em especial as recentes Súmulas 363 e 366 do STJ[2], as quais tratam, respectivamente, da competência para conhecer e julgar ações que envolvam honorários de profissional liberal e aquelas que tratam de indenizações postuladas pela viúva e filhos do empregado falecido em acidente de trabalho.

Desde logo, relativamente à competência para exame dos pedidos de cobrança de honorários, recorde-se uma das conclusões das “Jornadas”, organizada pela ANAMATRA e Escola do TST, em novembro de 2007: “Enunciado 23. Competência da Justiça do Trabalho. Ação de cobrança de honorários advocatícios. Ausência de relação de consumo. A Justiça do Trabalho é competente para julgar ações de cobrança de honorários advocatícios, desde que ajuizada por advogado na condição de pessoa natural, eis que o labor do advogado não é prestado em relação de consumo, em virtude de lei e de particularidades próprias, e ainda que o fosse, porque a relação consumeirista não afasta, por si só, o conceito de trabalho abarcado pelo art. 114 da CF”.

Relatou, também, o desacerto de decisão proferida pelo STJ, quando da análise da competência da Justiça do Trabalho para a apreciação dos interditos proibitórios, em relação ao movimento paredista da categoria dos bancários, fazendo menção               a julgamento de conflito de competência no qual restou fixada a competência da Justiça Comum[3]. Sabe-se que neste tema, o Supremo Tribunal Federal terminou por afirmar a competência da Justiça do Trabalho, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 579648.

2. ACIDENTES DE TRABALHO

Os atuais dados dos acidentes de trabalho já são conhecidos. Os acidentes de trabalho ocorrem tanto nas empresas dos setores econômicos mais atrasados, como também naqueles modernos. Inclusive nos setores mais dinâmicos da economia, existem acidentes que seriam facilmente evitados, acaso houvesse maior dedicação e cuidado na organização do trabalho humano. A atuação da Justiça do Trabalho, nestes anos posteriores à Emenda Constitucional nº 45, tem permitido o conhecimento mais pleno desta realidade que haverá de ser ultrapassada.

Como referido, o STJ firmou jurisprudência através da Súmula 366, no sentido de que a competência para conhecer e julgar ações que envolvam indenizações postuladas pela viúva e filhos do empregado falecido em acidente de trabalho é da Justiça Comum. Há um dissenso na jurisprudência, pois após outros precedentes[4], o STF julgou no dia 03.06.2009, conflito de competência[5] no qual, por unanimidade de votos, reconheceu a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar ações que versem sobre indenização decorrente de acidente de trabalho fatal ajuizadas por dependentes (cônjuges, filhos ou outros dependentes). Fica a expectativa de que o STJ revogue a Súmula nº 366, seguindo o entendimento do STF.

3. SERVIDORES E TRABALHADORES EM ENTES PÚBLICOS

Embora alguns defendam a ampla competência da Justiça do Trabalho, para julgar todos os temas que envolvam relações de trabalho com entes públicos, o STF tem se manifestado no sentido de que a Justiça do Trabalho não tem competência material para processar e julgar ações que versem sobre a relação jurídica estabelecida entre servidores contratados temporariamente e a Administração Pública. Tal situação foi colocada pelo Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Maurício José Godinho Delgado.

Para o Ministro, constituiu exceção à ampliação da competência, o julgamento de ações que envolvam servidores estatutários, embora questione que tal exceção se estenda aos contratos irregulares.

Contudo, sobre o tema, em recente decisão, no julgamento da Reclamação nº 6.087[6], cuja Relatora foi a Ministra Cármen Lúcia, o Supremo Tribunal Federal declarou a incompetência da Justiça do Trabalho para processar e julgar ação trabalhista na qual se discutia a validade da contratação emergencial e a natureza administrativa ou trabalhista da relação jurídica entre a autora daquela ação e o Município-reclamado.

Cabe ressaltar o cancelamento da OJ nº 205 da SDI-I do TST, que tratava             da competência material da Justiça do Trabalho para julgar ações relativas ao desvirtuamento das contratações especiais, temporárias, por entes públicos.

No atual debate jurisprudencial, corre-se o risco de termos trabalhadores de órgãos públicos, que não serão considerados nem celetistas e tampouco estatutários.

CONCLUSÃO

Já houve, em 1988, a opção por uma sociedade mais justa, com observância da solidariedade. Assim, as instituições devem ser reestruturadas para que se harmonizem com os novos tempos. Não podemos mais conviver com decisões que retardem o avanço humano e a organização da sociedade.

Mesmo os tratados internacionais, após a referida Emenda Constitucional, tem nova força, quase ao nível da própria Constituição. É preciso, portanto, que todos aqueles que atuam na área do Direito Social se envolvam nos debates, a fim de fortalecer a competência da Justiça do Trabalho, que tem papel fundamental na reconstituição da democracia e responsabilidade na concretização dos direitos fundamentais.


* Algumas destas linhas foram publicadas na coluna do TRT RS, “O Sul”, estando agora acrescidas das referências aos julgamentos mencionados.

[1] Entre as publicações de Alexandre Morais da Rosa, “Garantismo Jurídico e Controle de Constitucionalidade Material”, Rio de Janeiro: Lúmen, 2005 e “Para um Direito Democrático – diálogos sobre paradoxos”, organizador, Santa Catarina: Conceito Editorial, 2006.

[2] Em entendimento contrário, o Enunciado 23 de recente “Jornadas”, organizada pela ANAMATRA.

[3] Conflito de Competência 92.507/RJ, Relator Min. Fernando Gonçalves.

[4] Sebastião Geraldo de Oliveira citou, como exemplo, o Conflito de Competência 7.204/MG, Relator Min. Carlos Britto.

[5] Conflito de Competência 7.545/SC, Relator Min. Eros Grau.

[6] Envolvendo o município de Camaquã e o TRT da 4ª Região, Processo 00065-2007-141-04-00-1.

 


 INTERDITOS PROIBITÓRIOS E GREVE:  POR UMA TUTELA DA POSSE COMPATÍVEL COM O EXERCÍCIO DO DIREITO DE PARALISAÇÃO DO TRABALHO

 

Oscar Krost

Juiz do Trabalho do TRT 12ª R – SC

Membro do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do

Ministério Público do Trabalho – IPEATRA

 

“Inexiste no mundo coisa mais bem distribuída que o bom senso,                          visto que cada indivíduo acredita ser tão bem provido dele que                                 mesmo os mais difíceis de satisfazer em qualquer outro aspecto                             não costumam desejar possuí-lo mais do que já possuem.”

DESCARTES (2000, p. 35)

 

SUMÁRIO: Introdução; 1. Direito Coletivo do Trabalho. Greve. Conceitos. Histórico;

2. Interditos proibitórios. Análise; Conclusões; Referências Bibliográficas.

 

INTRODUÇÃO

O Direito como produto da vida em sociedade guarda estreita vinculação com os fatos que pretende regular, variando de acordo com os valores de cada época, ao ponto de BOBBIO (1992, p. 05) afirmar sobre os direitos do homem:

 

“(…) por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.”

 

Com relação ao Direito do Trabalho, especificamente, a observação ostenta maior pertinência, por sua origem forjada a partir das lutas coletivas em que reivindicado o estabelecimento de condições mínimas de dignidade e não como mera decorrência de concessões feitas por liberalidade do patronato ou por paternalismo do Estado.[1]

Neste intenso embate entre o capital e o trabalho, diversos fenômenos têm sua análise jurídica modificada com o decurso do tempo, passando por um verdadeiro iter evolutivo, sendo inicialmente ignorados, atingindo uma etapa em que proibidos, para,

finalmente, sofrerem regulação, caso da greve e dos movimentos “paredistas” em geral.

Como principal instrumento de contraposição à greve, os interditos proibitórios, instituto originado no direito processual civil e passível de adoção em caráter subsidiário no campo trabalhista por empregadores no enfrentamento, pela via judicial, dos efeitos relacionados ao esbulho ou à turbação da posse dos meios de produção.

Sobre a análise deste confronto recai a proposta do presente estudo, com enfoque na greve como direito social e pela contextualização do conflito em sua origem material, o “mundo do trabalho”.

Para tanto, serão utilizados textos de doutrina e precedentes jurisprudenciais, com ênfase à modificação da competência gerada pela Emenda Constitucional nº 45, de dezembro de 2004.

Não serão tratadas situações envolvendo funcionários públicos, civis ou militares, mas apenas empregados privados.

1. DIREITO COLETIVO DO TRABALHO. GREVE. CONCEITOS. HISTÓRICO

Inexiste fundamento lógico a justificar a fragmentação do Direito do Trabalho em individual e coletivo, por se tratarem de duas faces de um só fenômeno, além de unas suas fontes materiais e semelhantes seus destinatários, exceto por uma ideia de simplificação para fins de estudo, o que ainda assim conduz ao risco do que MIALLE (1979, pp. 12-3) convencionou chamar de “obstáculos epistemológicos” a um estudo crítico do Direito.

Neste sentido, a lição de SANTOS (2008, pp. 20-2):

 

“A história da evolução do Direito Coletivo do Trabalho seguramente confunde-se com a própria história do Direito do Trabalho.

(…)

O Direito das Relações Coletivas do Trabalho, sob o ponto de vista jurídico-sociológico, foi o fator principal, a mola propulsora do Direito do Trabalho, muito embora o reconhecimento pelo Estado da existência desse ramo do Direito tenha começado pela regulamentação do Direito Individual do Trabalho.”

 

Comprovando tal unidade, a existência de um acontecimento de cunho coletivo, porém com íntima vinculação à produção de normas individuais: a greve.

Etimologicamente, segundo VIANA (2007, p. 92), tal termo deriva de Grève, nome dado a uma praça de Paris próxima ao Rio Sena, tendo por significado, ainda, terreno plano, coberto de gravetos e areia, ao longo do mar ou de um curso de água. Seria o local de encontro dos trabalhadores durante a I Revolução Industrial para, dentre outras atividades, consagrar a paralisação do trabalho.

Ainda de acordo com VIANA (2007, pp. 92-3), “é curioso notar como as traduções dessa palavra em algumas línguas revelam significados da própria greve”, tais como do inglês strike (chocar-se, bater), do espanhol huelga (folga, descanso, derivada de huelgo, fôlego), do italiano sciopero (cujo prefixo é o mesmo de sciolto, que significa livre de ligações), concluindo ser “tudo isso ao mesmo tempo”.

Para MORAES (2003, p. 210), a greve representa o “direito de autodefesa               que consiste na abstenção coletiva e simultânea do trabalho, organizadamente, pelos trabalhadores de um ou vários departamentos ou estabelecimentos, com o fim de defender interesses determinados”, tais como a melhoria das condições de trabalho (reivindicativas), em apoio a outras categorias ou grupos (de solidariedade) e por transformações sociais (políticas).

Enfatizando seu caráter pluridimensional, pertinente, mais uma vez, a referência às palavras de VIANA (2007, p. 99):

 

“A greve é ao mesmo tempo pressão para construir a norma e sanção para que ela se cumpra. Por isso, serve ao Direito de três modos sucessivos: primeiro, como fonte material; em seguida, se transformada em convenção, como fonte formal; por fim, como modo adicional de garantir que as normas efetivamente se cumpram.

Em todos esses sentidos, a greve tem traços revolucionários também em termos jurídicos, pois – ao contrário do que normalmente faz – o Estado deixa explodir o conflito e permite que as próprias partes produzam, a partir dele, o seu próprio direito.”

 

No campo legislativo, como marco histórico, a edição da lei francesa Le Chapelier, de 1791, proibindo a associação de trabalhadores e as greves, revogada apenas em 1864, segundo SILVA e SOUTO MAIOR (2009).

No Brasil, a greve foi considerada crime e prática anti-social pelo Código Penal de 1890 e pela Constituição de 1937 (arts. 206 e 139, respectivamente), sendo apenas em 1946, também pela via constitucional, erigida a direito, cujo exercício sofreu regulação por lei, sendo assim tratada nos textos supervenientes, inclusive pela Carta de 1988 (art. 9º). Atualmente, é disciplinada pela Lei nº 7.783/89.

Para RAFFAGHELLI (2008, pp. 11-2), a greve teria passado no curso da história por três “eras”: da proibição (século XVIII, pela elevação do direito de propriedade privada a direito natural), da tolerância (século XX, pela atuação da OIT, por meio de atividade sem caráter normativo) e do reconhecimento constitucional (século XX, com sua constitucionalização como direito).

No plano internacional, é direito assegurado por inúmeras disposições,              em especial, pelas Convenções nº 87 e 98 da OIT, celebradas nos anos seguintes                 ao término da II Guerra Mundial, relativas à liberdade sindical, ao direito de sindicalização e à negociação coletiva, das quais a última foi ratificada pelo Brasil, pelo Decreto nº 33.196/53.[2]

Embora notória a vinculação da greve com o Direito do Trabalho, apenas a partir da promulgação da Emenda Constitucional 45, de dezembro de 2004, pela modificação do art. 114, passou à competência da Justiça do Trabalho o apreço dos conflitos decorrentes de seu exercício, embora seja o ramo há muito investido na função de dirimir contendas vinculadas à relação produtiva subordinada e por conta alheia.

Com isso, foi reparado um equívoco histórico, causador da cisão injustificada da competência para processar e julgar matéria tipicamente laboral.

Houve, ainda, a alteração da sistemática de processamento dos chamados “dissídios coletivos” de natureza econômica, passando a ser exigido como requisito ao ajuizamento o comum acordo dos litigantes após a recusa de pelo menos um destes em negociar ou de submeter a questão a um árbitro.

Tais alterações confirmam a expressa opção do Constituinte Derivado em valorizar a ”autocomposição” na resolução de litígios, pelo agir dos próprios envolvidos.

Somente quando frustrada a conciliação extrajudicial, bem como em situações de excessos ou abusos de direito, passaria, então, a ser admitida a intervenção do Poder Público, pelo Judiciário.

Neste ponto, contudo, um aspecto aparentemente secundário, relativo ao julgamento de interditos proibitórios, instrumento à disposição dos empregadores para neutralizar/reduzir os efeitos da greve, passou ao crivo dos Juízes do Trabalho, merecendo uma atenção mais detida, haja vista o tratamento até então dispensado à matéria, com ênfase à posse.

2. INTERDITOS PROIBITÓRIOS. ANÁLISE

Os interditos proibitórios encontram regulação no Código de Processo Civil, arts. 926 a 933, se tratando de ação de cunho mandamental com o objetivo de defender a posse em situações de justo receio de turbação ou esbulho iminente. Caso procedentes as alegações do autor, é determinada a expedição de comando proibitório pelo Juiz, cominando o réu com uma pena pecuniária na hipótese de transgressão da ordem ou, ainda, resguardando a manutenção/reintegração de posse.

Não há nas disposições processuais quaisquer exceções sobre a natureza da relação de direito material existente entre possuidor e pretenso agressor, aplicando-se de modo indistinto a conflitos das mais variadas matizes, tais como, por exemplo,               os que fazem parte integrantes de uma mesma família, movimentos sociais sem personalidade jurídica ou associações regularmente constituídas.

Contudo, inviável a compreensão de um conflito sem considerar o contexto histórico em que gerado, bem como suas causas, próximas e remotas, sob risco da produção de um mal ainda maior do que o por ele causado.

Desta forma, no apreço de interditos propostos na Justiça do Trabalho em decorrência do exercício de greve, não deve o intérprete se centrar na posse e em seus efeitos anexos, por considerar, em tal hipótese, a consequência como causa, na medida em que o cerne da contenda se localiza no pólo oposto, na ação que atinge os bens materiais.

O local de trabalho em que paralisada a prestação de serviços, embora de inegável propriedade do empregador, detentor dos meios de produção, deve atender  a uma função social, pela observância da valorização do trabalho e da livre iniciativa (Constituição, arts. 5º, inciso XXIII, e 170, caput e inciso III), elementos sem                     os quais não há riqueza, se apresentando como um locus diferenciado, com um “DNA” único.

Para tanto, não se cinge a gerar bens e serviços para o mercado, tributos aos cofres públicos e empregos aos trabalhadores, por um prisma simplesmente quantitativo. Deve, ainda, atender a um aspecto qualitativo, pela observância de Princípios e regras de tutela do consumidor, do meio ambiente, de ergonomia e de segurança do trabalho, dentre outros, suportando o conjunto de ônus inerente à propriedade.[3]

Tal destaque se faz ainda mais premente, considerando o processamento na Justiça Comum de interditos proibitórios propostos por empregadores em face da ação de uma coletividade de empregados, externando atos típicos de greve, mesmo após o advento da Emenda Constitucional 45, de dezembro de 2004, sob a justificativa de ser a posse a causa de pedir, o que dá margem às inusitadas hipóteses de competência concorrente e de prolação de decisões em sentidos diversos, em notória contrariedade à Lei Maior.[4]

Impõe-se esclarecer, contudo, que não se defende a complacência diante de manifestações ”paredistas”, mas apenas se invoca o operador do Direito a realizar uma análise da lei que disciplina a matéria em consonância com as demais disposições aplicáveis, inclusive no campo processual, de maneira a compatibilizá-las com o status de direito alcançado pela greve.

A este respeito, leciona REALE (1994, p. 78) que “o jurista, no momento hermenêutico da compreensão das regras jurídicas, não pode fazer abstração de como elas se constituíram, a que razões de fato e a que motivos de valor visaram a atender”, deixando de apreciar as fontes materiais e se limitando ao apreço descontextualizado das fontes formais, em processo meramente gramatical.

Além disso, muito se tem debatido sobre a redução da intervenção estatal no campo das relações de trabalho, sob as vestes da “desregulamentação” ou “flexibilização”, sempre objetivando reduzir custos em proveito das condições produtivas, analisadas apenas pelo viés empresário e em prejuízo de conquistas históricas dos trabalhadores, sendo, ao contrário, constantemente invocado este mesmo Estado por quem tanto dele reclama quando o interesse recai sobre a adoção de medidas repressivas para coibir o principal meio de manifestação e do exercício de pressão dos trabalhadores, pela greve.

Em tais situações, alguns empregadores sequer aguardam a deflagração do movimento grevista e a produção de quaisquer efeitos concretos, acionando o Judiciário com base em suposições e fatos em tese, com o intuito de obter, por meio do acolhimento de interditos proibitórios, comandos coercitivos contra o mais brando sinal de paralisação.

Se de um lado o direito de greve não se apresenta absoluto, de outro, também não o é o direito de propriedade, sendo coerente o entendimento do Comitê de Liberdade Sindical da OIT, no sentido de que limitações se apresentam lícitas apenas se razoáveis, conforme lição de DORNELES (2008, p. 43).

Tal entendimento, aliás, vem ao encontro da previsão na Lei nº 7.783/89, ao dispor, por exemplo, sobre a necessidade das partes esgotarem antes da greve a via negocial e a impossibilidade da paralisação integral de serviços essenciais (arts. 3º e 11).

O desafio ora posto pode ser sintetizado na preservação pelo Judiciário Trabalhista dos preceitos inscritos no art. 6o da Lei no 7.783/89: assegurar o direito dos grevistas ao “emprego de meios pacíficos tendentes a persuadir ou aliciar os trabalhadores a aderirem à greve” (inciso I), sem “violar ou constranger os direitos e garantias fundamentais de outrem” (parágrafo primeiro), o que também se aplica ao empregador, ao qual “é vedado adotar meios para constranger o empregado ao comparecimento ao trabalho, bem como capazes de frustrar a divulgação do movimento” (parágrafo segundo).

Para tanto, deve-se examinar os fatos que cercam o litígio, lançando mão do Princípio da Proporcionalidade, o qual, segundo STUMM (1995, pp. 79-80), pode ser desdobrado nos Princípios da Conformidade ou Adequação de Meios (a medida empregada deve ser adequada ao fim), da Necessidade (mínima “invasão” da liberdade individual) e da Proporcionalidade em Sentido Estrito (proporção entre o resultado obtido e a cargo de coerção utilizada), de modo que a decisão do caso concreto venha a sacrificar o mínimo possível cada um dos afetados.

Neste exato sentido, as razões de decidir do Desembargador Federal do Trabalho Lorival Ferreira dos Santos, integrante da 3ª Turma do TRT da 15ª Região, a seguir transcritas:

 

“Portanto, no caso do interdito proibitório ser ajuizado em decorrência de movimento grevista, há de se salientar que a proteção possessória somente seria justificável diante da existência de elementos probatórios concretos quanto à prática ou ameaça de prática de violência ou de outros abusos de direito pelo sindicato-requerido, posto que, do contrário, correr-se-ia o risco da tutela jurisdicional servir de propósito para facilitar ou mesmo fomentar a prática de atos inibitórios do exercício do direito de greve.

Necessário, portanto, o cotejo dos valores que emergem da demanda: de um lado, a liberdade de locomoção, o livre direito de trabalho e o direito de propriedade (CF, art. 5º, incisos XV e XXII); e, de outro, o direito à greve e à organização coletiva dos trabalhadores (CF, art. 9º).

Não é admissível a prevalência de um valor sobre o outro. Ambos devem coexistir, harmoniosamente, como recomenda uma sociedade civilizada e organizada com base nos postulados do Estado Democrático de Direito.                   A Justiça só deve intervir para preservar a ordem jurídica, coibindo que direitos sejam suprimidos ou violados.

A convivência entre o exercício ao direito de greve e o direito de propriedade, de ir e vir e de trabalho é indispensável, posto que, embora salvaguardado o direito à greve – que é o instrumento mais importante na           luta dos trabalhadores e o mais eficiente meio de conquista de direitos da classe trabalhadora – deve ele respeitar os demais direitos sufragados pela Constituição Federal, sob pena de restar caracterizada como ilegal ou abusiva           a greve.

Contudo, o Judiciário, em nome de assegurar o direito de propriedade ou posse, não pode negar o exercício pleno do direito de greve, sob pena de caracterizar a supremacia de um direito constitucional sobre os demais direitos.

(…)

No presente caso, os documentos de fls. 13/22 e 47/49 não são aptos a justificar o receio do autor, haja vista que não se visualiza elementos convincentes de que a manifestação dos dirigentes sindicais ou seus associados tenha impedido/ bloqueado o acesso de clientes e funcionários ao interior das agências bancárias, tampouco se observa a prática de qualquer embaraço ao desempenho da atividade empresarial, muito menos a prática de qualquer ato de violência. Da mesma forma, não se percebe ser iminente o risco de que as atividades empresariais sofreriam qualquer prejuízo em face das atitudes do sindicato-requerido.

Na verdade, das fotografias juntadas, observa-se simples tentativa de convencimento de trabalhadores a aderir ao movimento paredista ou de comunicação dos motivos da greve à população, atos esses que foram realizados de forma absolutamente pacífica.

(…)

Desse modo, à míngua de prova robusta do justo receio, não há                    razão para o acolhimento da irresignação recursal, devendo ser mantida a decisão que julgou improcedente a ação de interdito proibitório.” (Processo             nº 01514-2007-092-15-00-3-RO, Publicado em 21.11.2008)

 

Quer pela complexidade da matéria, ou ainda por sua importância para o desenvolvimento da economia e da própria vida em sociedade, indispensável o apreço de questões envolvendo a greve e o direito de posse dos meios de produção de um modo condizente com a evolução da história, deixando de se dispensar um tratamento reducionista ou marcado por preconceitos, apenas por apego ao passado e a entendimentos já sedimentados sob a égide de outra Constituição, marco de legitimação de outro regime político.

Neste cenário, soam como uma espécie de alerta as palavras de GALEANO (2001, p. 31):

 

“Do ponto de vista da coruja, do morcego, do boêmio e do ladrão, o crepúsculo é a hora do café-da-manhã.

A chuva é uma maldição para o turista e uma boa notícia para o camponês.

Do ponto de vista do nativo, pitoresco é o turista.

Do ponto de vista dos índios das ilhas do Mar do Caribe, Cristóvão Colombo, com seu chapéu de penas e sua capa de veludo encarnado, era um papagaio de dimensões nunca vistas.”

 

CONCLUSÕES

O Direito do Trabalho como ramo do conhecimento jurídico é uno e indivisível, não se justificando, senão para fins de estudo, sua fragmentação em individual e coletivo.

Apresenta-e como prova de tal entendimento a greve, fenômeno complexo                 e expressão coletiva mais marcante, a qual passou por uma evolução histórica, compreendendo fases em que ignorada, proibida para, finalmente, ser regulamentada, gerando intensos efeitos nas relações individuais de trabalho.

Em “resposta” a atos de greve, se encontra disponível aos empregadores na legislação processual medida judicial passível de adoção em quaisquer hipóteses de conflito que atinja ou ameace a posse (interditos proibitórios), o que, além de tutelar os meios de produção, tende a deslocar o eixo central da controvérsia, a afastando da prestação/paralisação do trabalho.

Contudo, sob risco de se incorrer em uma análise equivocada, tomando a consequência por causa, deve-se analisar a questão de modo contextualizado, com ênfase nas fontes materiais do litígio e na função social da propriedade, “norte” para a aplicação da Lei nº 7.783/89, apenas pela Justiça do Trabalho, a partir da promulgação da Emenda Constitucional 45 de 2004, sob a inspiração do Princípio da Proporcionalidade e desdobramentos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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STUMM, Raquel Denize. Princípio da Proporcionalidade no Direito Constitucional Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1995.

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[1] A respeito, CAMINO (2004, p. 25) sustenta que “os verdadeiros agentes das conquistas sociais são os grupos organizados, o povo na sua abstrata coletividade. Daí porque não ser correto atribuir, exclusivamente, à concessão da burguesia liberal as conquistas do século XIX.” Sobre o tema ver, ainda, BIAVASCHI (2007).

[2] A respeito, ver www.oitbrasil.org.br. Acesso em 06 fev. 2009.

[3] A relação complexa existente entre a posse e a propriedade, bem como sua legitimidade diante do conceito de justiça é com singular clareza analisada por AGUIAR (1999, pp. 84-5), ao defender que “o problema da propriedade quase sempre é tratado de forma irrealista. Só podemos tratar da questão da propriedade depois de observarmos seus modos de aquisição e sua correlação com a posse”, e concluir que “não será o estudo da propriedade enquanto direito ou princípio que nos vai dar o norte sobre sua justiça ou não. Será a posse, a produtividade e a destinação que indicarão a legitimidade ou não de certa apropriação. Podemos ainda dizer mais, afirmando que a posse e a produtividade é que precedem o direito de propriedade, assim como podemos também dizer que sua destinação é importante para percebermos sua justiça ou não.”

[4] Seguindo a orientação mencionada, as seguintes ementas:

Interdito proibitório. demanda cujo objeto BUSCA EVITAR MOLÉSTIA NA POSSE SEM IMPEDIR O EXERCÍCIO DO DIREITO DE GREVE. DECISÃO DA JUSTIÇA ESTADUAL QUE NÃO CONFLITA COM AQUELA ORIUNDA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. AGRAVO PROVIDO DE PLANO, FORTE NO ARTIGO 557, §1º-A, DO CPC. (TJRS, 20ª, Câmara Cível, AI nº 70026943894, Rel. Des. Rubem Duarte, julgado em 15.10.2008)

apelação cível. INTERDITO PROIBITÓRIO. DIREITO DE GREVE E LIVRE MANIFESTAÇÃO SINDICAL E DIREITO À PROTEÇÃO POSSESSÓRIA. preliminar. competência para processar e julgar o processo. justiça estadual. Não estando em discussão direitos trabalhistas, mas, sim, o direito à posse, como atributo da propriedade, não há falar em competência da Justiça do Trabalho, porque não caracterizada qualquer das hipóteses contidas no art. 114 da Constituição da República. (TJRS, 20ª Câmara Cível, AI nº 70024354672, Rel. Des. José Aquino Flores de Camargo, julgado em 2.07.2008)

PROCESSUAL CIVIL – COMPETÊNCIA RATIONE MATERIAE – INTERDITO PROIBITÓRIO CONTRA ATO PRATICADO POR GREVISTAS – JUSTIÇA COMUM ESTADUAL VERSUS JUSTIÇA TRABALHISTA – EMENDA CONSTITUCIONAL 45/02 – ALTERAÇÃO DE COMPETÊNCIA QUE NÃO ATINGE A HIPÓTESE DOS AUTOS – JUSTIÇA COMUM ESTADUAL COMPETENTE – INTERLOCUTÓRIO MANTIDO – PROVIMENTO NEGADO. (TJSC, 2ª Câmara de Direito Civil, AI Nº 2006.035097-2,               Rel. Designado Des. Monteiro Rocha, julgado em 14.12.2006)

 


TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO, SUBJETIVIDADE DOS TRABALHADORES E DANOS À SAÚDE – UMA LEITURA A PARTIR  DA JUSTIÇA DO TRABALHO*

 

José Renato Stangler

Juiz do Trabalho do TRT 4ª R – RS

 

A concorrência mais acirrada entre os burgueses e as crises comerciais                  dela resultantes torna o salário do trabalhador cada vez mais instável;                    o aperfeiçoamento incessante e acelerado da maquinaria torna sua existência cada vez mais insegura (Karl Marx e Friedrich Engels, trecho do Manifesto      do Partido Comunista, escrito entre dezembro de 1847 e janeiro de 1848).

 

SUMÁRIO: Introdução; 1. As transformações no mundo do trabalho; 2. Transformações no/do mundo do trabalho e produção de subjetividades dos trabalhadores; 3. O meio ambiente do trabalho e a saúde do trabalhador; 4. A Justiça do Trabalho no contexto das transformações no mundo do trabalho; 5. Da proteção em juizo à saúde do trabalhador; 6. Problemáticas emergentes relacionadas à saúde do trabalhador; 7. Das possibilidades de enfrentamento às agressões à saúde do trabalhador; Considerações Finais; Bibliografia.

 

INTRODUÇÃO

As transformações que ocorrem na sociedade atual – em geral, e na economia – em particular, atingem o mundo do trabalho e, consequentemente, os fatores materiais e imateriais relacionados com a execução das atividades dos trabalhadores, ou seja, o meio ambiente do trabalho, com forte impacto na classe trabalhadora, não apenas em sua materialidade, mas também na sua forma de ser, em sua subjetividade.

Diariamente o Judiciário trabalhista recebe ações nas quais trabalhadores postulam reparação de direitos violados, geralmente envolvendo não pagamento ou o pagamento incorreto de parcelas econômicas, descumprimento de normas sobre duração do trabalho, não atendimento de normas de segurança e de medicina do trabalho e de descumprimento de obrigações contratuais em geral.

A realidade do mundo do trabalho emerge nos processos judiciais submetidos à Justiça do Trabalho de várias formas, e o que há em comum em todas elas são os conflitos que ocorrem no cotidiano e seus efeitos sobre o trabalhador.

Observando esses conflitos, constata-se ser recorrente a transferência do risco do empreendimento para o trabalhador, seja através do não pagamento ou do pagamento incorreto de parcelas devidas, embora uma das características do contrato de trabalho seja a reciprocidade de obrigações, ou seja, entregue a força de trabalho o salário já é devido, não podendo seu pagamento ser frustrado por outros fatores (Camino, 2003, p. 253).

Também é habitual que se ultrapasse o limite legal do tempo de trabalho e não se respeitem os intervalos intra e entre turnos para repouso e alimentação, apesar de existirem princípios que se universalizaram na proteção do trabalho humano, com fundamentos de natureza biológica – visando combater problemas decorrentes da fadiga, de caráter social – em decorrência da necessidade de convivência em sociedade e de índole econômica – buscando aumentar a produtividade da empresa (Süssekind et al, 2002, p. 784).

Alarmante também é o número cada vez maior de acidentes do trabalho relatados, o que mostra não haver uma preocupação efetiva na proteção à saúde do trabalhador, apesar da existência de inúmeras normas de segurança e de medicina do trabalho neste sentido.

As normas de segurança compreendem a ausência ou redução dos riscos da atividade profissional e as de medicina do trabalho consistem na prevenção de doenças profissionais e de melhoramento das aptidões no que concerne às condições físicas, mentais e ambientais (Magano, 1980, p. 144).

O desrespeito a outras obrigações vinculadas à condição do empreendedor da atividade produtiva, como, por exemplo, de respeitar a dignidade do trabalhador é também uma constante, apesar da existência de normas estabelecendo condutas visando impedir o exercício abusivo do poder de comando (Camino, 2003, p. 253).

Durante a constância da relação de emprego, os trabalhadores, em regra, não buscam tais reparações, pois iminente a possibilidade da perda do emprego, bem cada vez mais escasso. Apenas por exceção alguns buscam reparar a violação de seus direitos na vigência do contrato, geralmente quando portadores de alguma estabilidade ou garantia no emprego.

Porém, quando se rompe o vínculo de emprego, independente da forma como tal se deu, expressivos números de situações deságuam no Judiciário, “hospital de almas, aonde ninguém vai por estar feliz, ponto de encontro de todos os desencontros”, assim definido na feliz expressão utilizada pelo Desembargador Adroaldo Furtado Fabrício, então Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em seu discurso de saudação, em 28.10.1997, a Desembargadora Maria Berenice Dias, primeira mulher a ascender àquela instituição.

Desse cenário, sob a forma de pedido de reparação de danos pelo Judiciário, evidenciam-se muitas dores, de sujeitos singulares e problemáticas universais, dentre as quais se destaca a: a) do negro que, discriminado por seu superior hierárquico que o humilhava e o tratava com desprezo e de forma pejorativa, não mais suportando as condições a que estava submetido – pois sua saúde começava a ser atingida, ajuíza ação buscando resgatar sua dignidade; b) da empregada doméstica, em área rural, que, demitida reclama apenas parcelas rescisórias e em represália seu empregador instiga seus cães a perseguirem-na e lhe causaram lesões; c) da mulher assediada sexualmente por seu superior hierárquico, que vive a angústia de denunciar ou não o fato, diante dos possíveis desdobramentos, não apenas na pequena cidade onde vive, mas em seu casamento e na perda do emprego; d) do trabalhador em serviço de vigilância, que surpreendido por assaltantes que ingressaram no estabelecimento do empregador, sofre grave lesão e busca a reparação dos danos decorrentes da culpa do empregador que não lhe deu treinamento adequado para o desempenho da função; e) do eletricitário, terceirizado, que sofre choque em corrente de alta tensão por não ter lhe ser fornecido os equipamentos de segurança necessários, ficando ou incapacitado para o trabalho ou mesmo vindo a falecer em decorrência deste; e, f) da criança menor de 16 anos que, embora vedado legalmente, trabalha, pois agredida em sua formação física e mental.

A perspectiva de dar visibilidade a situações como as descritas, sugere e instiga a realização de um estudo bibliográfico que, somado às percepções do cotidiano e       ao exercício de colocar em análise a reparação e/ou prevenção de danos, podem se materializar em um exercício cartográfico.

Refere-se à cartografia, por se tratar de produção de conhecimento que pretende narrar e, em alguma medida problematizar situações fáticas que sob a forma de processos judiciais correm o risco de serem banalizados em seus significados.

Cartografia aqui entendida não como o mapeamento de um território geográfico estático, mas como um desenho que acompanha os movimentos (Dalmolin, 2006, p.101) e percebe a composição e decomposição dos territórios. Percebe, ainda, por quais manobras e estratégias se criam novas paisagens (Mairesse, 2003, 270).

Menciona-se também um primeiro exercício porque se trata de um ensaio de cartografar, de aprendizagem de outros modos possíveis de pensar e produzir discursos, epistemes. Trata-se, pois, de um breve mapeamento de realidades em movimento e que exigem em igual proporção, principalmente em razão das transformações no mundo do trabalho e, consequentemente, no meio ambiente do trabalho, a ampliação da capacidade de resposta não apenas pelo Estado, mas pela sociedade de modo geral.

Compreende-se, desse modo, que as ideias presentes neste estudo resultam da composição de recortes teóricos e de percepções vivenciadas na realidade cotidiana de um Juiz do Trabalho.

Partindo desses pressupostos, o presente estudo tem como questão central caracterizar os efeitos das transformações no mundo do trabalho e suas implicações na produção de demanda à Justiça do Trabalho, ramo do Poder Judiciário, que tem entre suas atribuições conciliar e julgar conflitos entre trabalhadores e empregadores.

Coloca-se, portanto, como principal objetivo do estudo, a realização de uma breve leitura de realidade acerca das práticas de violação de direitos trabalhistas, especificamente aquelas que produzem danos à saúde do trabalhador, bem como das possibilidades de enfrentamento das mesmas. Constituem-se, ainda, objetivos do estudo, compreender como os processos de violação de direitos trabalhistas incidem nos modos de produção de subjetividade do trabalhador e também indicar possibilidades de enfrentamento às agressões à saúde do trabalhador.

1. AS TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO

A partir do final do século XX, com a crescente unificação de mercados nacionais, o surgimento de um “mercado global” de bens e serviços internacionalmente negociáveis, o enfraquecimento do Estado do Bem-Estar Social e o colapso do Campo Soviético, a globalização – de feição neoliberal – se intensifica com fortes consequências econômicas, sociais e políticas.

Para os neoliberais, é necessário reduzir o tamanho e as funções do Estado, pois as crises do capitalismo decorrem basicamente dos aumentos salariais e dos gastos sociais do Estado, que deve se concentrar principalmente na estabilidade monetária (Vizentini, 1007, p. 46). Passa-se então da teoria à prática de redução de salários, eliminação de postos de trabalho e extinção de direitos sociais.

Presenciou-se, também, a partir da década de 80, profundas transformações            no mundo do trabalho. Em uma década de grande salto tecnológico, a automação, a robótica e a microeletrônica invadiram o universo das fábricas, inserindo-se e desenvolvendo-se nas relações de trabalho e de produção (Antunes, 2002, p. 19).

O cronômetro e a produção em série e de massa já não são os únicos processos de produção e se fundem com outros, sendo, em alguns casos, até substituídos pela flexibilização da produção, pela “especialização flexível”, enfim, por novos padrões de busca de produtividade e novas formas de adequação da produção ao mercado.

Ensaiam-se modalidades de desconcentração industrial, buscam-se novos padrões de gestão da força de trabalho, o que se reflete no mundo do trabalho. Isso tudo para dotar o capital do instrumental necessário para se adequar à sua nova fase.

A reestruturação das empresas, com a introdução de novos fundamentos competitivos, marcados pelo aumento da produtividade e redução de custos, leva, consequentemente, ao desemprego estrutural, a precarização do emprego e do salário, e ao enfraquecimento do movimento sindical.

Emerge, pois, uma nova realidade econômica que coloca na ordem do dia à redução de custos, principalmente do trabalho. Expressivos setores da sociedade passam a defender a necessidade de um novo tipo de flexibilização do trabalho e mesmo a supressão ou redução de garantias contidas na legislação trabalhista, para adaptá-la à dinâmica do mercado.

A flexibilidade, em termos gerais e, no âmbito do Direito do Trabalho, nada mais é do que eliminação, diminuição, afrouxamento ou adaptação da proteção trabalhista clássica, com a finalidade – real ou pretensa – de aumentar o investimento, o emprego ou a competividade da empresa (Uriarte, 2002, p. 9). Tem fundamentos econômicos ou tecnológico-produtivos. O econômico assenta-se no neoliberalismo, que postula a individualização das relações de trabalho até o limite do politicamente possível, deixando que cada trabalhador negocie, “livremente”, a venda de sua força de trabalho com seu empregador. E, o tecnológico-produtivo na necessidade de uma adaptação legislativa, em decorrência da revolução tecnológica que possibilitou mudanças nos sistemas produtivos e na organização do trabalho.

O novo paradigma, além de influenciar a ideia de emprego e de carreira em local fixo, privilegia a concepção de um espaço no qual trabalhadores, de um lado, superespecializados e, de outro, temporários, se vinculam para logo dele se desvincularem (Fonseca, 2002, p. 17).

Em contraposição ao trabalhador fordista, especializado, parcelizado e desqualificado, o novo trabalhador deve ser mais escolarizado, com raciocínio lógico, com capacidade de se relacionar com os colegas e de operar equipamentos diversificados e complexos, apto a realizar diversas operações, motivado para o trabalho, engajado com os objetivos da empresa, enfim, um “colaborador” (Merlo, 2007, p. 66).

Há, ainda, uma tendência para a intelectualização do trabalho manual, algo coerente e compatível com o avanço tecnológico e para uma subproletarização intensa, presente no trabalho precário, parcial, subcontratado (Antunes, 1995, p. 54).

No novo capitalismo ocorrem também mudanças no padrão de remuneração, com estímulo à remuneração variável, sempre dependente do desempenho individual, e na relação tempo/trabalho, com maior controle de jornada, jornadas exaustivas e flexibilização destas.

Ao inserir-se competitivamente no novo paradigma tecnológico, enorme massa de trabalhadores perde seus antigos direitos e fica desempregada, marginalizada ou trabalha sob novas formas de trabalho em relações muitas vezes precárias e não padronizadas.

As transformações no mundo do trabalho trazem o desemprego estrutural, a precarização do emprego e do salário e o enfraquecimento do movimento sindical, atingindo, profundamente, a classe trabalhadora em sua materialidade, na sua condição de vida.

2. TRANSFORMAÇÕES NO/DO MUNDO DO TRABALHO E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES DOS TRABALHADORES

As frequentes inovações no mundo do trabalho fazem com que as mudanças sejam tensas para a classe-que-vive-do-trabalho (Antunes, 1999) afetando todas as dimensões da vida em sociedade.

Considerando as exigências colocadas a partir dessas inovações, constata-se a supervalorização de habilidades intelectuais e emocionais, o que incide diretamente no modo de ser do sujeito trabalhador, na sua subjetividade, que é tudo aquilo que está alocado no sujeito e se constitui por sua posição no mundo em contraste às condições externas de sua existência e que precedem à sua entrada no mundo (Fonseca, 2002, p. 22).

Isto porque para alcançar os objetivos de sua atividade, o trabalhador deve ser maleável quanto a horários e mudanças, inclusive geográficas, além de ter um conjunto de habilidades, dentre as quais, destaca-se a abertura irrestrita ao novo, em vias de fazer-se, para em cada situação concreta, emergencial ou não, mobilizar sua inteligência, seus recursos criativos pessoais, as potencialidades, desejos e valores (Alves, 2006, p. 48).

Os efeitos de tais tensões, muitas vezes surdas e não visibilizadas, manifestam-se de modos diversos no corpo e na mente dos trabalhadores, que sob a aparência de uma livre escolha, se vêem obrigados, além de despender energias em formação permanente, a modos de trabalho super especializados (Pochmann, 2002, p. 26).

Para seguir em frente, os trabalhadores devem partir do pressuposto que não devem associar atividade produtiva com estabilidade na carreira ou a laços contínuos e duradouros com tarefas e companheiros de trabalho. Ao contrário, devem estar sempre abertos à experiência do trabalho de curto prazo, a instituições flexíveis e à constante disponibilidade de correr riscos. Sendo assim, os trabalhadores devem ser produtivos, flexíveis, motivados. “Flexibilidade” é a palavra do dia: ela anuncia empregos sem segurança, sem compromissos ou direitos. (Bauman, 2001, p. 184).             É o que ocorre, por exemplo, com a terceirização dos contratos de trabalho, utilizada em larga escala através de cooperativas de mão de obra ou de contratos de estágio, que se incorporam ao cotidiano.

Neste cenário, também a qualificação deve ser crescente e a pressão para que tal ocorra passa a ser transferida individualmente aos trabalhadores que passam a ser os únicos responsáveis pela sua manutenção no mercado de trabalho.

Desse modo, no mundo do desemprego estrutural ninguém pode se sentir seguro, pois não há habilidade ou experiência que uma vez adquiridas garantam que o emprego será oferecido e, uma vez oferecido, que seja durável. Atinge, pois, a identidade dos trabalhadores, uma vida de não se apegar a nada, sendo as associações de curto prazo mais úteis que de longo prazo (Sennett, 2006, p. 159).

Diante da impossibilidade de planejar o futuro de longo prazo, em decorrência do novo modelo produtivo, e, da sensação permanente de insegurança, por não mais se vivenciarem valores de lealdade, confiança, comprometimento, integridade e ajuda mútua no cotidiano, ocorre o que Sennett (2006) denomina de corrosão do “caráter”.

Partindo dessas premissas, o individualismo na relação social e afetiva produz subjetividades perversas e eticamente fracassadas. O próprio sujeito interioriza e torna inquestionáveis, comportamentos de inclusão e exclusão social. Como destaca Foucault: “a vida foi transformada num objeto de poder” (apud Keil, 2002, p. 91).

Criam-se, pois, novas subjetividades, pois o comportamento, segundo Baumann (2001) se desloca da ética do trabalho e passa a ser marcado pela estética do consumo (caracterizada pela necessidade de satisfação imediata), acentuando o individualismo, pois se o trabalho é coletivo, o consumo é individual.

A impossibilidade de planejar o futuro produz um “incontrolável” desejo de aproveitar os momentos de forma mais intensa possível. A perspectiva de um presente “ansioso e angustiado” mostra a ausência de princípios que forneçam sentido à vida, que não seja o consumo da própria existência (Nardi, 2003, p. 48). O hiper-individualismo, implícito nas novas formas de gestão do trabalho, força o sujeito no vazio do “eu”, pois a solidão faz com que o outro seja, muitas vezes, percebido como inimigo.

Também a capacidade de se desprender do passado e a tolerância em relação a mudanças passam a serem traços exigidos do trabalhador contemporâneo, em muitos setores. E, embora muitos trabalhadores consigam suportar a vida nestas condições, uma parcela expressiva da força de trabalho traz dentro de si ansiedade, medo, desânimo e falta de entusiasmo no trabalho (Fridman, 2000, p. 53). Exemplo disso é o vendedor que, por não atingir a meta de vendas é obrigado a “pagar” prendas perante colegas e, em decorrência, é atingido em sua dignidade, em sua auto-estima.

A partir do novo paradigma temos, então, o sofrimento dos trabalhadores que tem medo de não serem capazes de manter um desempenho adequado no trabalho, de não estarem à altura de novas exigências: de tempo, de cadência, de formação, de informação, de aprendizagem, de nível de conhecimento, de experiência, de adaptação à cultura ou à ideologia da empresa (Merlo, 2007, p. 67). Caso típico é o trabalhador do sistema bancário, que acaba submetido a forte estresse e pode acabar se deprimindo, e apresentar ainda quadro de baixa auto-estima, alcoolismo e mesmo de propensão    ao suicídio.

Quando os laços à sua volta são sucessivamente desmantelados, a vida interior dos trabalhadores sofre profundos danos, pois experimentam permanente instabilidade e insegurança (Fridman, 2000, p. 61).

Neste contexto, os desgastes físicos e psicológicos são banalizados e encarados como normais. E desse processo decorre, como registra Dejours (1992, p. 77), há               a possibilidade de desestruturação das relações psico-afetivas, colocando em risco sua saúde.

Consciente ou não desses efeitos, os trabalhadores utilizam-se de estratégias de defesa, dentre as quais a agressividade nas relações fora do ambiente de trabalho – geralmente na família, ou mesmo atenuar a tensão interna recorrendo ao consumo de bebidas alcoólicas ou de psicotrópicos, colocando em risco sua saúde, pois as más condições de trabalho podem gerar acidentes do trabalho.

Dessa compreensão é importante considerar que a relação entre trabalho e saúde precisa ser, como regra, pensada em sua correlação entre o sujeito e sua história pessoal e seu contexto de trabalho, particularizando os fatores de doenças a que estão expostos.

A partir desses fragmentos do cotidiano do mundo do trabalho, é possível perceber que com as transformações que ocorrem, a classe trabalhadora modifica seu modo de ser, sua subjetividade, pois valores como lealdade, e solidariedade, passam a ser substituídos por uma sensação permanente de inconstância e insegurança.

3. O MEIO AMBIENTE DO TRABALHO E A SAÚDE DO TRABALHADOR

O conceito de meio ambiente do trabalho evidencia um conjunto de fatores que se relacionam com a execução das atividades dos trabalhadores e envolve elementos materiais, como locais de trabalho em sentido amplo, máquinas, móveis utensílios e ferramentas e, imateriais, como rotinas, processos de produção e modo de exercício do poder de comando do empregador (Brandão, 2006, p. 65).

Destacam-se, desses fatores, algumas formas habituais de agressões à saúde do trabalhador, tais como: a) o trabalho extraordinário habitual e ainda mais quando noturno que leva à exaustão e compromete o sistema imunológico, que além de deixar o trabalhador mais vulnerável a doenças e a acidentes de trabalho, também leva à insatisfação com o serviço e baixa produtividade; a fadiga, por sua vez, ocorre também nos trabalhos que envolvem esforço mental, especialmente quando executados sob tensão e ou de características monótonas e repetitivas; b) o trabalho em condições insalubre, ou seja, o realizado em condições não saudáveis, que geram enfermidades e agravam outras condições em que o serviço é prestado. A continuidade à exposição a agentes insalubres pode desencadear o aparecimento de doenças ocupacionais, legalmente equiparadas a acidentes de trabalho; c) o trabalho em condições de periculosidade, onde o risco é mais elevado, pode levar a incapacidade ou morte súbita. Gera maior desgaste do trabalhador pela constante vigilância além da possibilidade de aumento de risco de acidentes; e, d) o trabalho penoso, no qual o agente é o próprio serviço que se executa. Pelo desgaste acentuado do trabalhador, pode provocar problemas de coluna e articulações, doenças do coração, transtorno e sofrimento mental, além de fadiga e outras doenças (Magano, 1980).

Além das agressões ao corpo, há também agressões à saúde mental do trabalhador, que em geral acarretam ansiedade, euforia, irritação, angústia, frustração, depressão e outros sentimentos/sintomas que podem evoluir para um vasto quadro de doenças psicossomáticas. As agressões tanto ao corpo, como a mente, na maioria das vezes imbricada um ao outro sempre existiram no cotidiano do mundo do trabalho.

A questão que se coloca é que este fenômeno vem tomando novas configurações nos dias atuais, é não é apenas relacionado ao expressivo aumento de tais agressões, mas também à maior violência no local de trabalho, através da pressão sobre os trabalhadores, o que se convencionou denominar de assédio moral. Um dos pressupostos da relação de emprego é a pessoalidade, pois não se pode separar a força de trabalho da pessoa do trabalhador. Logo, quem contrata o trabalho tem o dever de preservar sua integridade, inclusive física e mental, pois o trabalho não deve trazer prejuízo algum para sua saúde nem diminuir sua expectativa de vida.

O direito à saúde do trabalhador somente será efetivo com um ambiente de trabalho saudável e em condições que permita que o mesmo seja exercido com dignidade.

É possível afirmar também que são inúmeras as normas jurídicas que reconhecem o direito à saúde do trabalhador. O principal marco da introdução das discussões acerca da saúde do trabalhador no ordenamento jurídico nacional foi a Constituição da República de 1988. Nesta, a saúde foi considerada como direito social, ficando garantida aos trabalhadores a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (Oliveira, 2002, p. 78).

O grande desafio, no entanto, nos dias de hoje, é a incorporação destas garantias na realidade dos ambientes de trabalho, o que não ocorre, de um lado, por desinteresse (econômico) dos empregadores e de outro, por desconhecimento pela grande maioria dos empregados e de seus sindicatos representativos.

4. A JUSTIÇA DO TRABALHO NO CONTEXTO DAS TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO

Os Tribunais do Trabalho surgiram, em épocas diferentes e em distintos países, pela necessidade de haver um judiciário facilmente acessível aos trabalhadores e de se julgar, rapidamente, os conflitos do trabalho, por juízes que tivessem conhecimento do meio ambiente do trabalho (Maranhão, 1992, p. 321).

A legislação trabalhista e a Justiça do Trabalho surgem, em nosso país, em decorrência de longo processo que se desenvolvia no exterior, sob forte influência dos princípios de proteção ao trabalho. Mas o ambiente político-social tornou-se mais propício à instituição de tais organismos com a Revolução de 1930, surgindo, em 1932, as então Juntas de Conciliação de Julgamento.

Com a Constituição de 1946 a Justiça do Trabalho passou, finalmente, a integrar o Poder Judiciário, rompendo-se o vínculo que o prendia ao Poder Executivo e dotando-o inclusive de autonomia administrativa (Maranhão, 1992, p. 325).

Com a Emenda Constitucional nº 24/99, foi extinta a representação classista e atualmente, no Brasil, os conflitos trabalhistas entre trabalhadores e empregadores são julgados em primeira instância por Juízes do Trabalho, magistrados que ingressam na carreira através de concurso público. Carreira esta que vai até o cargo de juiz do Tribunal da respectiva Região (no caso do Rio Grande do Sul, a 4ª Região, com sede em Porto Alegre). E, o mais alto órgão da Justiça do Trabalho é o Tribunal Superior do Trabalho, com sede em Brasília.

A Justiça do Trabalho surgiu da necessidade de se solucionar os conflitos entre trabalhadores e empregadores, de modo simples, informal, célere, eficaz e gratuito, em contraste com a Justiça Comum, quase sempre onerosa, formalista e lenta.

Enquanto no direito comum há uma constante preocupação em assegurar a igualdade jurídica dos contratantes, no direito do trabalho a preocupação central é a de proteger uma das partes na busca de uma igualdade substancial, que se expressa no princípio da proteção do trabalhador, “a própria razão de ser do direito do trabalho”, ideia fundante do direito do trabalho.

Esse princípio traduz a premissa de que se deve favorecer aquele a quem se pretende proteger. Tal leva a uma constatação de unilateralidade do direito do trabalho, expresso na intenção deliberada de tutelar o hipossuficiente na relação com o capital (Camino, 2003, p. 96).

O princípio da proteção do trabalhador resulta das normas imperativas e, portanto, de ordem pública, que caracterizam a intervenção básica do Estado nas relações de trabalho, visando a opor obstáculos à autonomia da vontade, pois o direito do trabalho pressupõe uma situação de desigualdade real que ele tende a corrigir com uma desigualdade jurídica (Süssekind et al, 2002, p. 146).

Ao longo do tempo a Competência material da Justiça do Trabalho vem sendo alargada, gradativamente, porém, com a Emenda Constitucional nº 45/04, esta se ampliou consideravelmente.

Pertinente ao presente estudo destaca-se que a Justiça do Trabalho passou a ter competência também para julgamento de ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes de relação de trabalho, como as decorrentes de acidente do trabalho e doenças ocupacionais, e de assédio moral.

5. DA PROTEÇÃO EM JUIZO À SAÚDE DO TRABALHADOR

Não observado espontaneamente o preceito legal, sua realização prática pode ser buscada coercitivamente em juízo. De forma a desestimular o infrator, a tutela jurisdicional deve ser rápida e eficaz. Neste sentido, é consenso, nos dias atuais, que deve haver efetividade do processo, isto é, ele deve fazer atuar o direito o mais próximo possível do que ocorreria se houvesse cumprimento espontâneo.

E no processo do trabalho com mais razão, ainda, pois como destaca o Ministro do TST João Oreste Dalazen, a morosidade neste é intolerável, uma vez que convive de perto com a pobreza, com a miséria, constituindo-se, o retardamento da prestação jurisdicional, em qualificada denegação de justiça (Dalazen, 1997, p. 875).

Para impedir que haja o perecimento do direito ou mesmo a ineficácia da decisão judicial, leis recentes introduziram mecanismos que permitem, em determinadas situações, se possa, através de uma apreciação sumária com efeitos provisórios               (até que se possa fazer um exame mais exaustivo), assegurar tutelas urgentes.

Dentre as tutelas de urgência, destacam-se a cautelar e a tutela antecipatória, ambas aplicáveis no processo do trabalho, por força do disposto no art. 769 da CLT. A cautelar, sempre que houver receito que a demora coloque em perigo o direito postulado e que haja aparência da existência do direito indicado pela parte, poderá ser concedida para garantir o resultado prático de decisão final de processo principal. E a tutela antecipada, quando houver receio de dano irreparável ou de difícil reparação, mediante prova sumária e verossimilhança da alegação, estabelecendo, provisoriamente, a pretensão que será conhecida, em caráter definitivo, apenas ao final.

O art. 114 da Constituição Federal estabelece que a busca da tutela judicial           (do direito à saúde), deve ser feita na Justiça do Trabalho. Esta tutela pode ser deferida por meio de reclamatória trabalhista, dissídio coletivo ou Ação Civil Pública.

A ação trabalhista relacionada com o direito ao ambiente de trabalho pode ser ajuizada pelo próprio trabalhador ou pelo sindicato profissional, na condição de substituto processual dos integrantes da categoria (inciso III do art. 8º da CF/88).

Quando a lesão atinge a todos os participantes de um mesmo ambiente de trabalho, a intervenção sindical, como substituto processual, adquire maior relevância, na medida em que evita que o trabalhador fique exposto individualmente, com risco, inclusive, de perder o emprego (Oliveira, 2002, p. 432).

No que se refere às normas de segurança, higiene e saúde no trabalho, despontam com grande interesse as ações trabalhistas que trazem pedidos relacionados à obrigação de fazer ou não fazer do empregador. Raras, no entanto, pois predomina a cultura de cobrança de adicionais compensatórios e não de tutela à saúde do trabalhador.

Sendo, a saúde do trabalhador bem jurídico inalienável, de relevância pública, se o empregador se recusa a cumprir aquilo que a lei lhe impõe, a cominação de multa diária se mostra instrumento eficaz de pressão psicológica e financeira até o efetivo cumprimento (Oliveira, 2002, p. 436).

Entre as ações judiciais destinadas a assegurar o direito à saúde do trabalhador figura, também, o dissídio coletivo. Por esta via, a proteção se dá pela criação de novas condições de trabalho, tanto pelo preenchimento das lacunas legais, como pela ampliação das normas já existentes (Oliveira, 2002, p. 441).

Quando se fala em proteção do meio ambiente, compreendido o do trabalho, como dispõe o inciso VIII do art. 200 da CF/88, surgem interesses difusos ou coletivos, desempenhando papel fundamental na defesa destes a ação civil pública, especialmente para cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer.

A diferença entre interesses coletivos e difusos é que enquanto neste último o universo de pessoas afetadas pelo ato lesivo não é passível de determinação, nos interesses coletivos há uma coletividade concreta e determinável.

Na defesa de interesses coletivos, nos termos do inciso III e § 1º do art. 129 da CF/88, podem propor ação civil pública tanto o Ministério Público do Trabalho, como os sindicatos. No entanto, na defesa de interesses difusos, somente o MPT possui legitimidade.

6. PROBLEMÁTICAS EMERGENTES RELACIONADAS À SAÚDE DO TRABALHADOR

Partindo da leitura do cotidiano, observa-se nos processos submetidos à Justiça do Trabalho a emergência de práticas de violações de direitos trabalhistas. Constata-se, no entanto, que fruto das transformações que ocorrem atualmente no mundo do trabalho, a classe trabalhadora é atingida não apenas em sua materialidade, mas também no seu modo de ser.

Neste cenário, de desemprego estrutural, de enfraquecimento do movimento sindical e de precarização do emprego e do salário, por não mais se vivenciarem valores de lealdade, confiança, comprometimento, integridade e ajuda mútua no cotidiano, o trabalhador vive em permanente insegurança.

O novo paradigma gera sofrimento e desgaste físico e psicológico e coloca em risco sua saúde, pois nem todos conseguem suportar a vida nestas condições, e ficam mais vulneráveis. Diante da degradação do meio ambiente do trabalho, agravam-se as agressões à saúde do trabalhador e, ao lado daquelas que já eram habituais, agrega-se as decorrentes do assédio moral – fruto de maior violência no local de trabalho, e à saúde mental – característica marcante dos dias atuais.

Tais fatos são facilmente perceptíveis no Judiciário Trabalhista pelo sempre crescente número – no período mais recente, de ações postulando indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes de relação de trabalho, tendo como fato gerador assédio moral, acidente do trabalho e doenças ocupacionais, até mesmo antes da Emenda Constitucional 45/04 estabelecer, de modo expresso, a competência da Justiça do Trabalho para julgar estas matérias.

O conceito e a abrangência do acidente do trabalho, em decorrência das repercussões jurídicas, estão fixados em lei. Além do acidente típico, o legislador vem ampliando a proteção, incluindo outras situações equiparáveis, cujas consequências danosas para o trabalhador são semelhantes.

O art. 19 da Lei nº 8.213/91 cuida do acidente-tipo, também chamado de “macrotrauma”, e considera acidente do trabalho o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa (…), provocando lesão corporal ou perturbação funcional que causa a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho.

O acidente do trabalho é, pois, evento único, imprevisto, bem configurado no tempo e no espaço e de consequências imediatas. Há que se registrar, ainda, que              há infortúnios que, sem provocarem alarde ou impacto, provocam danos meses ou             anos depois de sua ocorrência. O que se exige é o nexo de causalidade e a lesividade. O nexo causal constitui a relação de causa e efeito entre o evento e o resultado. Para se estabelecer relação de causalidade, não se exige a prova de certeza, bastando o juízo de admissibilidade. Não se repara a lesão ou a doença, mas a incapacidade para o trabalho (Monteiro, 2000, p. 12)

Já as doenças ocupacionais, previstas no art. nº 20 da referida lei, tem seus efeitos jurídicos equiparados ao acidente típico e subdividem-se em doenças profissionais e do trabalho (Oliveira, 2002, 215). As primeiras, também conhecidas como “doenças profissionais típicas”, são as decorrentes do trabalho, da profissão, da função, acompanhando o obreiro em outra empresa, durante sua vida profissional. Resultam de risco específico direto, característica do ramo de atividade. Enquanto que as doenças do trabalho, também chamadas de “moléstias profissionais atípicas”, são resultantes das condições do exercício, do ambiente e dos instrumentos laborais, sendo própria daquela empresa e não necessariamente acompanhando o trabalhador. Têm como causa ou concausa o risco específico indireto. Por serem atípicas, exigem a comprovação do nexo de causalidade com o trabalho (Monteiro, 2000, p. 13).

O art. 21 da Lei nº 8.213/91 enumera algumas situações que também caracterizam acidente do trabalho, os chamados acidentes do trabalho por equiparação, porque se relacionam apenas indiretamente com a atividade. O acidente do trabalho estará configurado – ainda que não se apresente como causa única e exclusiva da lesão ou doença, desde que o mesmo tenha contribuído diretamente para o dano, ou seja, haja concausa, seja ela antecedente, superveniente ou concomitante. Atenção especial merece o acidente in itinere, de trajeto, que se verifica no percurso da residência ao local de trabalho ou deste para aquela, independente de quem seja o veiculo utilizado na locomoção. Verifica-se, ainda, o acidente equiparado, sempre que o empregado estiver à disposição do empregador, independente do local e dia, em horário de trabalho e no ambiente da empresa, mesmo sem estar efetivamente trabalhando (Monteiro, 2000, p. 15).

Dentre as doenças ocupacionais (profissionais e do trabalho), que mais se fazem presente no dia a dia da Justiça do Trabalho, temos as decorrentes: a) da perda auditiva (induzida) por exposição sistemática a ruído; b) das lesões por esforços repetitivos – LER/DORT (dor crônica, em decorrência do trabalho), que se manifesta de várias formas clínicas, como: inflamação dos tendões e bainhas dos músculos extensores dos dedos (tenossinovites); provocadas por ruptura ou estiramento do carpo no cotovelo (epicondilites); decorrentes de processo inflamatório que acomete pequenas bolsas de paredes finas, geralmente localizadas nos ombros (bursites); incapacitante da articulação do ombro (tendinite do supra-espinhoso e bicipital); tumores, geralmente no dorso do punho (cistos sinoviais); impossibilidade de estender o dedo após flexão máxima (dedo em gatilho); impossibilidade da extensão normal dos dedos (contratura ou moléstia de Dupuytren); compreensão de nervos periféricos (por esforços repetitivos); c) da coluna vertebral (decorrente de condição de trabalho agressiva); d) da SIDA-AIDS (contaminação pelo vírus conhecido como HIV); e) das pneumoconioses (inalação de poeira mineral); f) da dermatose ocupacional (alteração da pele); g) das varizes (dilatação permanente de veia); h) da epilepsia (desencadeada pelo trabalho); e, i) da hipertensão e doenças cardíacas (agravada por condições ambientes especiais) (Monteiro, 2000).

O assédio moral, também denominado de terrorismo psicológico, de inserção recente no mundo jurídico, nada mais é do que uma degradação do ambiente de trabalho, através de condutas abusivas de superiores hierárquicos sobre subordinados (vertical), ou destes sobre aqueles (ascendentes) ou de colegas (horizontal), tornando extremamente penoso ao trabalhador, braçal ou intelectual, a continuidade da relação laboral (Felker, 2006, p. 171).

Hirigoyen (2005) define o assédio moral no trabalho como qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude…) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho.

Forma sutil de violência, o assédio moral no trabalho pode acarretar graves consequências sobre a saúde do trabalhador, tanto do ponto de vista físico como psíquico, advindos tanto do estresse e da ansiedade, podendo causar desestruturação psicológica, perda de identidade, sentimento de inferioridade e comprometimento das relações afetivas. Em geral institui-se de modo insidioso e invisível nas relações de trabalho. Compreende uma diversidade de comportamentos: como coações, pressões psicológicas, humilhações, intimidações, ameaças, comportamentos hostis, atitudes rudes e agressivas, violações de direitos e assédio psicológico. Essas manifestações podem vir ou não acompanhadas de agressões físicas e de assédio sexual.

Importante evidenciar que as transformações porque passa o mundo trabalho atual, com a precarização do trabalho, a corrosão do caráter, o individualismo exacerbado, a diminuição dos espaços de representação dos trabalhadores e a exigência de desempenhos baseadas na excelência facilitam o fenômeno do assédio moral no trabalho (Jacques et al, 2006, p. 102).

Dessas expressões, encontra-se como socialmente aceito para expressar o sofrimento psíquico, o estresse, reconhecido pelo imaginário social como naturalmente vinculado ao trabalho, e sua compreensão implica em reconhecer uma variedade de vivências que vão desde irritabilidade até a depressão. E nesse sentido, salienta-se que quanto maiores as condições geradoras de estresse, de forma intensa e prolongada, maior a vulnerabilidade para adoecimento físico e mental. Seus sintomas tanto podem ser físicos, como mentais ou emocionais. Quanto aos sintomas físicos mais citados, destacam-se: fadiga, dores de cabeça, insônia, dores no corpo, palpitações alterações intestinais, náuseas, tremores, extremidades frias e, resfriados constantes. Entre os sintomas relacionados à dimensão psíquica do trabalhador, destacam-se: diminuição de atenção concentrada e da memória, indecisão, confusão, perda do senso de humor, ansiedade, depressão, raiva, frustração, preocupação, medo, irritabilidade e impaciência.

Entre os tipos de estresses crônicos do trabalho encontra-se a denominada síndrome de burnout (ou síndrome do esgotamento profissional), que mais recentemente tem sido associada também aos trabalhadores provenientes de ambientes de trabalho que passam por transformações organizacionais (Jacques et al, 2006, p. 100).

Também merece atenção no tocante à saúde do trabalhador a depressão, que pode se manifestar de diferentes maneiras, associada, ou não, a outros diagnósticos, em quadros agudos ou crônicos, na forma de sentimento de tristeza, baixa auto-estima, vivência de fracasso, desânimo, o que também pode levar ao uso de substâncias psicoativas, sendo que a mais recorrente o álcool.

A depressão relacionada ao trabalho pode expressar-se de forma mais ou menos grave ou mesmo sutil, e está associada a decepções sucessivas em situações de trabalho frustrantes; perdas acumuladas ao longo dos anos de trabalho; de exigências excessivas de desempenho cada vez maior, no trabalho, gerado pelo excesso de competição, implicando ameaça permanente de perda do lugar que ocupa na hierarquia da empresa; perda efetiva; perda do posto de trabalho e demissão (Jacques, 2006, p. 102).

Considerando tais evidências, as agressões à saúde que já se faziam presentes no dia a dia do trabalhador, se intensificam. Seu enfrentamento é urgente, sob pena de regredirmos a condições de prestação de trabalho similares as existentes no período anterior a primeira revolução industrial, com graves consequências, inclusive sociais.

6. DAS POSSIBILIDADES DE ENFRENTAMENTO ÀS AGRESSÕES             À SAÚDE DO TRABALHADOR

O respeito à dignidade dos trabalhadores passa não apenas pela reparação, mas também pela prevenção da violação de direitos trabalhistas – em geral e, à saúde – em particular.

O enfrentamento às agressões à saúde do trabalhador pode e deve ser feito através do ajuizamento de ações, que além de reparar os danos sofridos tem caráter pedagógico sobre as empresas.

Necessário, pois, que trabalhadores e sindicatos, tenham mais conhecimento e façam melhor uso dos instrumentos jurídicos disponíveis, pois o que se percebe é que se naturalizou o dano à saúde.

Considerando-se, no entanto, que predomina a cultura de cobrança de adicionais compensatórios e não de tutela da saúde do trabalhador, a incorporação das garantias legais de proteção à saúde no cotidiano, exige a compreensão de que mais do que reparar, é preciso atuar de forma preventiva na preservação da saúde.

Empregadores, sindicatos profissionais, Ministério do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, Organizações Não Governamentais (ONGs) e o próprio Estado devem adotar medidas efetivas de prevenção.

O empregador, que ciente de suas responsabilidades, deve ter claro que ao preservar à saúde do trabalhador, estará preservando também a saúde financeira da sua empresa.

Os sindicatos através de medidas educativas, de denúncias ao Ministério do Trabalho e ao Ministério Público do Trabalho e, mesmo de ajuizamento de ações na condição de substituto processual dos integrantes da categoria profissional.

O Ministério do Trabalho através de uma fiscalização efetiva no dia a dia das condições de trabalho, aparelhando-se e estruturando-se adequadamente para exercer sua função.

O Ministério Público do Trabalho, melhor estruturado, que por certo pode desempenhar relevante papel na mudança desta cultura da reparação para a prevenção à saúde do trabalhador.

Considerando esse conjunto de atores sociais, acredita-se que o salto de qualidade, no entanto, para que se evite risco e agravo à saúde do trabalhador, vincula-se à adoção de políticas que respeitem os limites do ser humano e sejam norteadas pelo equilíbrio e bem-estar físico, mental, psicológico e social dos trabalhadores.

Isto porque no concreto e na vivência individual, não se encontram apenas sofrimento, mutilação e morte, mas pode existir, também, a possibilidade do trabalhador estabelecer uma relação de prazer e sentido para com o seu trabalho.

Nesse sentido, é indispensável compreender como se elaboram as duas faces da organização do trabalho, aquelas que são, respectivamente, fonte de sofrimento e de prazer, para se tentar uma interpretação mais global dos laços entre trabalho e saúde (Merlo, 2002, p. 139).

Também é fundamental reconhecer que tais possibilidades devem assegurar a participação dos trabalhadores na formulação e vigilância das questões de saúde e segurança, conferindo validade ao saber dos trabalhadores, através de políticas               de desenvolvimento de RH, de aprimoramento de estudos de gestão, de criação            de “espaços de escuta” e mesmo assegurar a realização de estudos e investigações independentes.

E mais, devem reconhecer também o exercício de direitos fundamentais dos trabalhadores, entre eles: a) o direito à informação: sobre a natureza dos riscos, das medidas de controle que estão sendo adotadas pelo empregador, dos resultados dos exames médicos e das avaliações ambientais; b) o direito à recusa ao trabalho em condições de risco grave para a saúde ou a vida; c) o direito à consulta prévia aos trabalhadores, antes da mudança de tecnologia, métodos, processos e formas de organização do trabalho; e, d) o estabelecimento de mecanismos de participação, desde a escolha de tecnologias, a escolha de profissionais que irão atuar nos serviços de saúde (Mendes, 1991, p. 347).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desafio dos dias atuais, frente aos abusos do capital, com a globalização neoliberal, não se limita apenas a salvar o emprego, mas proporcionar, também, as condições de manter a dignidade do trabalhador.

A degradação do meio ambiente do trabalho, fruto das profundas transformações no mundo do trabalho e que atingem a classe trabalhadora não apenas em sua materialidade, mas também em sua subjetividade, faz emergir novas problemáticas relacionadas à saúde do trabalhador: o assédio moral, as doenças ocupacionais e os acidentes do trabalho. Dessa realidade emerge também a necessidade de melhor instrumentalização para a compreensão do mundo do trabalho e seus efeitos no sujeito trabalhador.

Tal fato é perceptível no dia a dia da Justiça do Trabalho, através das ações que diariamente são ajuizadas buscando reparação de direitos violados.

Percebe-se, porém, que em relação à saúde do trabalhador, predomina a cultura da indenização, ao invés da prevenção. E, embora o enfrentamento a tais questões também deva se dar pelos mecanismos existentes, os avanços para que se evite risco e agravo situam-se na possibilidade de adoção de políticas que respeitem os limites do ser humano.

Quanto mais visíveis às violações de direitos, mais se definirá no espaço público as responsabilidades das desigualdades e das injustiças sociais (Keil, 2002,  p. 100), pois é da “consciência do direito de ter direitos” que as subjetividades críticas se evidenciam e os direitos se enraízam nas práticas sociais.

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* Trabalho apresentado como requisito parcial à obtenção do título de Especialista em Planejamento e Gestão de Práticas de Inclusão Social – Faculdade de Educação/UPF, sob orientação da Profª MS. Clenir Maria Moretto, em dezembro de 2007.

 

 


BEM-ESTAR DAS EMPRESAS E  MAL-ESTAR LABORAL: O ASSÉDIO MORAL EMPRESARIAL COMO  MODO DE GESTÃO DE RECURSOS HUMANOS

 

Wilson Ramos Filho

Advogado – PR

Doutor em Direito

Professor da UNIBRASIL, na Universidad Pablo de Olavide – Espanha, e na UFPR

Pesquisador em pós-doutorado na École de Hautes Études en Sciences Sociales – Paris

 

 

SUMÁRIO: Introdução; 1. O Direito do Trabalho e a legitimação do capitalismo;                  2. Novas formas de gestão, legitimação do capitalismo e bem-estar das empresas;                  3. O mal-estar laboral no capitalismo gerencial; 4. O assédio moral e a moral do assédio empresarial; Referências Bibliográficas.

 

INTRODUÇÃO

Os operadores jurídicos perante a Justiça do Trabalho têm manifestado certa estranheza em relação à intrigante frequência de temas relacionados às alegações de práticas de assédio moral nas ações trabalhistas individuais. Nas faculdades de direito, seja no âmbito dos trabalhos acadêmicos de conclusão de curso, seja nos trabalhos finais de pós-graduação, do mesmo modo, verifica-se que o tema vem recebendo atenção da comunidade científica, resultando em rica e volumosa produção editorial a respeito de temas relacionados ao assédio moral no âmbito de relações de emprego brasileiras e sua reparação, apesar da ausência de regulação estatal específica (DALLEGRAVE NETO, 2007: 295)

Superado o primeiro momento de incertezas quanto à existência real do fenômeno (SALVADOR, 2002), a doutrina específica confluiu para classificar o assédio moral laboral em três grandes espécies (HIRIGOYEN, 2002: 112). A primeira, também chamada de assédio moral estratégico seria aquele praticado no âmbito de relação de emprego visando constranger o empregado a desligar-se da empresa. A segunda espécie, geralmente denominada como assédio moral perverso, seria aquele praticado como manifestação doentia visando destruir psicologicamente um ou vários de seus colegas de trabalho, geralmente subordinados. A terceira espécie, o assédio moral institucional, engloba dois tipos de manifestações abusivas do poder diretivo: a primeira, por ocorrer no âmbito de relações de trabalho de natureza pública, estatutária ou celetista, será denominada neste artigo como assédio moral organizacional; a segunda, por ocorrer no âmbito de relações de emprego ou a relações de trabalho equiparado àquelas,

será denominada como assédio moral empresarial.

O assédio moral empresarial fundado em práticas gerenciais voltadas ao aumento da produtividade e da lucratividade das empresas que por suas características e por sua reiteração potencialmente causam danos à saúde física ou mental dos empregados é objeto do presente artigo.

Sua motivação decorre da constatação de que a doutrina ao buscar descrever cientificamente as características comuns a todas as espécies e tipos do gênero assédio moral laboral, segundo parece, acaba por dificultar a compreensão do fenômeno prejudicando tanto sua repressão, quanto a reparação dos danos dele decorrentes. De fato, no foro trabalhista a frequência das duas primeiras espécies assédio moral laboral é estatisticamente pouco importante[1], já que a enorme maioria dos casos de assédio moral empresarial decorre dos métodos de gestão e das técnicas a eles associados para aumento da produtividade e dos resultados para os detentores dos meios de produção.

Não se desconhece, obviamente, práticas empresariais que visam induzir trabalhadores a se auto-excluírem das empresas, principalmente nos países em que se assegura o emprego aos trabalhadores. Mesmo no Brasil, onde esse direito fundamental dos empregados ainda não foi regulamentado, nas escassas hipóteses em que trabalhadores detêm garantia de continuidade da relação de emprego, muitas vezes se verificam práticas visando constrangê-los a pedirem demissão ou, abrindo mão das garantias existentes, solicitar a resilição unilateral de seus contratos de trabalho por iniciativa do empregador. Embora menos frequentes, porque escassas as situações de garantia de emprego, devem ser objeto de estudo e, evidentemente, de preocupações quanto à sua reparabilidade, que neste caso, preferencialmente haverá de se configurar como retorno ao status quo ante. Todavia, diferentemente do que ocorre no assédio moral empresarial, no assédio moral estratégico a intenção do sujeito ativo da prática abusiva é essencial para sua configuração.

Do mesmo modo, apesar de ser infinitamente menor o número de casos submetidos à apreciação do Judiciário Trabalhista envolvendo controvérsias decorrentes do assédio moral perverso, tal prática condenável por prejudicial ao meio ambiente laboral difere bastante daquela consistente no assédio moral empresarial. Ou seja, apesar de ambas serem espécie do gênero assédio moral laboral, por suas próprias características, a tentativa de construção de categorização e teorização unitárias para todas ambas, ao contrário de permitir uma maior aproximação científica do objeto de análise, acaba tornando mais complexa a sua compreensão.

Na tentativa de diminuir essa complexidade nos tópicos seguintes serão lembrados alguns mecanismos de legitimação do modo de produção capitalista, se analisará a convivência entre dois modos de gestão empresarial na virada para o século atual para, por fim, analisarem-se as principais características da gestão capitalista contemporânea como elementos potencialmente causadores de assédio moral empresarial.

  1. 1. O DIREITO DO TRABALHO E A LEGITIMAÇÃO DO CAPITALISMO

A maneira de o capitalismo obter adesão dos trabalhadores e do conjunto da sociedade aos seus interesses, legitimando o modelo de sociedade que propõe, sofreu metamorfoses significativas ao longo do século passado.

Analisado o acúmulo de riqueza essencial para constituição do capitalismo em modo de produção dominante, Max Weber lembra que os protestantes puderam enriquecer rapidamente quando, em substituição à cosmovisão pré-capitalista, construíram nova racionalidade, fundada na determinação para ganhar e acumular recursos. A esta nova racionalidade, entendida como modo de justificação ideológica diferenciado, denominou como “espírito do capitalismo”. Suas análises demonstram que o espírito do capitalismo foi muito além da mera justificação para o acúmulo monetário. Exigiu principalmente que houvesse na sociedade uma predisposição para os negócios, com indivíduos disciplinados, austeros, econômicos, vocacionados para a acumulação. Para que o capitalismo se tornasse hegemônico foi necessária a existência de “trabalhadores conscientizados” a produzir cada vez mais, visando “melhorar de vida”, ao contrário do que caracterizava o modo de produção anterior e da ideologia religiosa que lhe dava sustentação, o catolicismo. Esse novo ethos, essa nova posição frente ao mundo, é que teria possibilitado ao capitalismo tornar-se modo de produção dominante, em contraposição à visão anterior que priorizava o trabalho apenas como meio de sobrevivência. Para que o capitalismo se transformasse em modo de produção dominante, em síntese, teria sido necessário convencer as pessoas de que estas, e não outras, seriam as melhores bases para sociedade que se estava construindo.

Segundo esta nova ética da prosperidade, adotada em substituição àquela característica das sociedades anteriores, se fez necessária a subserviência voluntária dos trabalhadores ao regime do salariado, regime este bastante inferior ao anterior em termos de qualidade de vida. Para desviar a atenção dos trabalhadores das péssimas condições objetivas decorrentes das relações capitalistas de produção construiu-se um conjunto de representações apto a “conscientizar” os trabalhadores de que o modo de produção que se implantava era melhor que o anterior. Tomado como um absoluto, uma vocação, o esse novo conjunto de representações e de legitimação, apoiado na educação, econômica e religiosa, permitiu a constituição do “espírito do capitalismo”, motivando as pessoas a quererem sempre ganhar mais, produzir mais, em um processo que se auto-legitimava (WEBER, 2004).

No Brasil este sistema de legitimação, em substituição à pura e dura correlação de forças que caracterizou as primeiras décadas do século XX, torna-se hegemônico apenas na ambiência histórica instituída pela primeira grande crise capitalista que possibilitou a implantação do intervencionismo estatal pelo governo autoritário, de 1930 a 1945. A partir daí e não sem grandes resistências iniciais o empresariado passa, pouco a pouco, a compreender a nova funcionalidade do Estado e do Direito para a defesa de seus interesses no modo de produção. Consolidando tais processos de legitimação deste primeiro espírito do capitalismo o empresariado nacional passa a consentir a regulação estatal, exigindo como contrapartida a consolidação do poder patronal, pela via da subordinação.

Este sistema, fundado em peculiar relação entre capital e trabalho, necessitava de elementos justificadores que induzissem à percepção de que este sistema seria, por um lado, superior ao modo de produção pré-capitalista, colonial e dependente, que caracterizou a história brasileira até o final da primeira república; por outro lado, precisava convencer o conjunto da população que capitalismo regulado que impunha era superior também à alternativa socialista[2].

Para tanto, o capitalismo brasileiro, sem renunciar à possibilidade sempre frequente em nossa história de utilizar-se a repressão estatal para impor-se como dominante, utilizou dois sistemas de representação que diferenciados teoricamente, tinham a mesma finalidade legitimadora. O primeiro sistema de legitimação decorre do ideário corporativista que impregnou o sistema jurídico trabalhista nacional dotando-lhe de características perenes. O segundo, decorrente da perda de capacidade sedutora do modelo corporativista com a derrota do fascismo europeu, apresentou-se como conjunto de perspectivas que, fundadas na liberdade, potencializava os valores como mérito, desempenho individual, empreendedorismo, audácia, liberdade, pluralismo, entre outros. Esse sistema, na sua vertente social-democrata oferecia garantias de segurança e argumentos morais para que o modo de produção seguisse existindo fornecendo-lhe fundamentação. O papel desempenhado pelo Direito do Trabalho e pela Justiça do Trabalho em tais sistemas de legitimação resulta evidente.

Neste sentido se pode afirmar que se a era Vargas foi o período necessário para que o empresariado brasileiro se apercebesse da ambivalência peculiar ao Direito            do Trabalho (ao assegurar direitos aos empregados, consolida e legitima o poder empresarial e o próprio sistema capitalista), o período subsequente, até o início da segunda ditadura, foi o período para a institucionalização de tal sistema na vida nacional, uma vez que foi a partir da consolidação das leis trabalhistas, em 1943, que esse ramo do direito foi dotado de organicidade apta a servir como elemento na amálgama social então construída no sentido de lograr adesão das pessoas ao modo de vida que o capitalismo propunha.

Não se trata em absoluto de uma característica exclusiva à história do Direito do Trabalho brasileiro. No mundo todo este ramo do direito baseado em sistema de garantias permitiu a regulação do trabalho subordinado impondo, em níveis diversos, limitações à autonomia contratual. Tal intromissão na autonomia negocial não derivou exclusivamente nem das reivindicações dos trabalhadores, nem da evolução das ideias rumo a níveis superiores de proteção dos direitos humanos. A interferência estatal no conteúdo mínimo dos contratos de compra e venda da força de trabalho em moldes capitalistas decorreu fundamentalmente do temor das elites empresariais e políticas de que o ideário comunista e socialista posto em prática em alguns países e objeto de grande proselitismo pudesse por em risco a continuidade do modo de produção capitalista, concepção esta sintetizada na concepção segundo a qual o intervencionismo estatal europeu e sua expressão política, a social-democracia, teriam “cedido os anéis para não ceder os dedos”.

Nos países de capitalismo central o pacto entre as classes sociais, conhecido como “compromisso social-democrata”[3], os temores causados pelo crescimento territorial da União Soviética e de sua importância estratégica política no planeta, possibilitaram o desenvolvimento do intervencionismo estatal que veio a caracterizar as democracias ocidentais, com forte proteção social. Sendo assim, a ampliação progressiva dos direitos sociais, nos países centrais como nos periféricos, principalmente no período do segundo pós-guerra, deve ser entendida como contraposição ideológica ao projeto alternativo, anticapitalista, constituindo-se em elemento ideológico da guerra-fria que então opunha projetos de sociedade antagônicos.

Com a descolonização que caracterizou os anos cinquenta e sessenta decorrentes de movimentos de libertação nacional principalmente na África e na Ásia, alguns dos quais fortemente influenciados pelos ideais socialistas, e com a crítica social e cultural a ele endereçada nos países mais desenvolvidos, o capitalismo se viu forçado a reforçar seus mecanismos de justificação, possibilitando o desenvolvimento acelerado do Direito do Trabalho no período.

Como as resultantes das correlações de forças entre as classes sociais não foram as mesmas em todos os países, o Direito positivo do Trabalho apesar de conter um núcleo comum[4], adquiriu características diferenciadas em cada Estado individualmente considerado, sendo mais protetivo dos empregadores nas formações históricas concretas em que os trabalhadores contavam com baixa capacidade de pressão social ou, ao contrário, mais tuitivo dos interesses dos empregados, nos países com maior potencialidade de “colocar em risco os dedos capitalistas”, ou seja, com maior mobilização obreira.

No Brasil, nas duas décadas subsequentes à primeira redemocratização, muitos direitos trabalhistas foram reconhecidos ou ampliados pela legislação estatal, dentre os quais a introdução da remuneração dos repousos semanais e dos dias feriados, ampliação do direito a férias, extensão aos trabalhadores rurais de alguns direitos já assegurados aos trabalhadores urbanos, instituição do décimo-terceiro salário, dentre outros. No plano internacional, do mesmo modo, dentre os diversos elementos utilizados pelo modo de produção capitalista para se reciclar e para fortalecer seus mecanismos de legitimação (como saúde universal, educação pública, regimes de previdência social e de aposentadorias) figura também sem dúvida a sofisticação do Direito do Trabalho como instrumento de diminuição das tensões sociais e do aparato judicial de solução de conflitos trabalhistas, individuais e coletivos.

Nos países de capitalismo central a adesão ao conjunto de valores defendido pelo capitalismo era obtida pela concessão de benefícios por parte do Estado, pelo reconhecimento dos direitos sociais como direitos fundamentais, e por parte das empresas nos processos de negociação coletiva, com fortalecimento dos sindicatos. Já na periferia capitalista a intervenção estatal não se dava em moldes social-democratas, mas segundo parâmetros burocráticos-autoritários (RAMOS FILHO, 1999), pelos quais as empresas não necessitavam de tal sistema de direitos e garantias para legitimar o sistema capitalista, eis que tinham os Estados e os Exércitos ao seu lado para induzir a subordinação de todos aos seus interesses de classe[5]. Esta constatação contribui para explicar os diferenciados níveis do caráter tutelar do Direito do Trabalho, sempre decorrente das relações que se estabelecem entre as classes sociais, em cada país individualmente considerado.

Com o crescimento na adesão social ao ideário de esquerda e com o fortalecimento dos movimentos sociais e sindicais vislumbra-se mudança significativa no espírito do capitalismo, principalmente na Europa, a partir do final da década de sessenta e no início dos anos setenta, depois da crise capitalista que ficou conhecida como “choque do petróleo”[6]. Tal mudança veio no sentido de se construir um novo sistema de justificação que resistisse melhor à crítica anticapitalista configurando um segundo espírito do capitalismo fundado em distintos modos de gestão empresarial articulado a políticas públicas[7], renovando promessas de justiça social em ambiente de liberdade nos limites fixados pelo Direito do Trabalho.

Tanto este capitalismo organizado, decorrente da intervenção estatal, quanto o comunismo então implantado, que na URSS de então atingira sua conformação mais característica, estavam apoiados no conceito de organização e em seus métodos de gestão, os quais possibilitaram a emergência de uma verdadeira revolução gerencial. De fato, se no socialismo real surge uma casta de burocratas, a nomenklatura, que ocupa o aparelho de Estado para desenvolver políticas distributivistas, ainda que a custa dos direitos civis e políticos, também nos países que implantaram o capitalismo organizado surge uma nova categoria social, a dos administradores de empresa profissionais. Essa nova casta profissional que permite ao capitalismo organizado resistir melhor às críticas que lhe são endereçadas pelo sistema concorrente passa a desempenhar papel fundamental nos Estados, passando a ocupar cargos e funções importantes tanto no setor público, quanto no setor privado, sendo que, algumas vezes, seus membros mais destacados trocam várias vezes de posição. Esta característica do capitalismo intervencionista permitiu o surgimento de um novo tipo de governança, nas empresas e nos Estados, pela qual administradores profissionais, executivos geralmente portadores de diplomas de curso superior, passam a exercer fundamental influência no próprio desenvolvimento e reciclagem do modo de produção capitalista, no final do século passado.

Um dos temas mais característicos dessa “nova forma de gestão” centrava-se à época na crítica ao nepotismo, ou seja, nos processos de sucessão empresarial por hereditariedade, ou sem fundamento outro, nas empresas de administração familiar. As defesas da administração científica ou profissional, além de eventualmente propiciar um incremento na lucratividade das empresas, ou na eficiência do serviço público quando dirigido por integrantes dessa nova categoria social, cumpriu significativa função ideológica, ao enfatizar as possibilidades de ascensão social vertical fundada no mérito e no esforço individual. O enorme crescimento quantitativo do número de vagas ofertadas pelo ensino superior no Brasil para os cursos ligados à gestão empresarial, como administração de empresas, ciências econômicas e ciências contábeis, principalmente a partir da década de noventa, são característicos deste momento ideológico.

A hiper-valorização dos executivos profissionalizados e as defesas de novas formas de gestão que comprometessem os empregados com o futuro do modo de produção configuram este capitalismo gerencial, pode ser caracterizado, em resumo, I – pela gestão racional por objetivos, II – pela promessa de melhora progressiva das condições de trabalho e III – pela possibilidade de se construir uma carreira nas empresas. Esses três elementos assegurariam legitimidade à gestão, garantindo credibilidade ao ideário subjacente e adesão do conjunto da sociedade aos valores por ela representados. O discurso articulado com base nestes valores do novo capitalismo propunha assegurar as necessidades mínimas da população pelo Estado Provedor em regime de liberdade e de respeito às individualidades, sempre em oposição ao sistema “concorrente” que, embora mais coletivista acabaria impondo a igualdade à custa da liberdade, o que não seria desejável segundo tal fundamentação ideológica.

Este capitalismo gerencial, que de modo crítico já foi denominado como capito-cadrisme[8], aparece justificado em festejadas obras da teoria da administração de empresas, nos anos sessenta, com Alfred CHANDLER que se refere a essa nova casta social como sendo “a mão visível do mercado”[9] e a partir dos anos setenta, nas obras de John Kenneth GALBRAITH, com a denominação de tecnoburocracia[10]. Este conjunto ideológico defensor do capitalismo gerencial repercute no Brasil de modo algo confuso e anacrônico no inicio dos anos noventa quando se discutia a implantação do capitalismo organizado, em moldes social-democratas pela Constituição Federal de 1988.

A inclusão de considerável rol de direitos sociais do trabalho naquela Carta Constitucional, como se sabe, resultou da correlação de forças sociais então estabelecida refletindo a necessidade de induzir a adesão de todos ao conjunto de valores consagrados pelo Estado Capitalista de Direito então restabelecido, legitimando-o.

No ano seguinte, todavia, vislumbra-se a reação do empresariado nacional. Meses após a sua promulgação, intensificam-se as críticas à enumeração de direitos sociais no texto constitucional e ao modelo intervencionista estatal por ele adotado, com fundamento na ideologia neoliberal. Pregando a retirada do Estado das relações econômicas, o empresariado passa a atacar o Direito do Trabalho com ênfase crescente, por anacrônico, embalado pela ambiência internacional impactada pela “queda do muro de Berlin” que simbolizou o fim dos regimes socialistas na União Soviética e em outros países do leste europeu.

O desaparecimento do modelo alternativo ao capitalismo organizado durante            a campanha eleitoral presidencial de 1989 contribuiu para a consagração eleitoral              do candidato apoiado pelo estadofóbico[11] empresariado brasileiro e possibilitou o crescimento hegemônico da ideologia neoliberal que caracterizou a virada do século, contemporâneo de significativas metamorfoses na gestão empresarial[12], como se analisará no tópico seguinte.

  1. 2. NOVAS FORMAS DE GESTÃO, LEGITIMAÇÃO DO CAPITALISMO E BEM-ESTAR DAS EMPRESAS

Na virada do século as relações de produção capitalistas sofreram significativas mudanças, inclusive quanto aos seus modos de legitimação, mas, como se sabe, as alterações no mundo do trabalho, na produção, foram mais profundas. As próprias técnicas de gestão do segundo espírito do capitalismo restaram alteradas.

Espraiando-se globalmente depois do fim do modo de produção alternativo um novo modo de gerenciar os recursos humanos estabeleceu-se e consolidou-se, induzindo lealdades, submissão e subserviência ao espírito capitalista que então era engendrado. Com o desaparecimento da concorrência ideológica, ou seja, com o fim dos regimes de socialismo real, de certa forma os capitalistas sentiram-se à vontade para “resgatar os anéis cedidos” anteriormente: desde o inicio do intervencionismo estatal, passando pela própria construção do Direito do Trabalho como ramo autônomo da ciência jurídica, até as concessões a que se viu obrigado em face da crítica social dos anos 60 e 70. O capitalismo gerencial do final do século anterior já não se temia a “perda dos dedos”, teríamos chegado ao “fim da história” (FUKUYAMA, 1992), representada pela definitiva vitória – ideológica – do mercado e da democracia liberal sobre os ideais igualitaristas.

No neofordismo[13] característico do período os postulados sociais-democratas que singularizavam o segundo espírito do capitalismo deixam, progressivamente, de serem valorizados. O desejo de se construir uma carreira, com segurança no emprego tutelado por uma série de garantias por parte do Estado, é substituído ideologicamente pelo desejo de maior autonomia, pela hipervalorização do desenvolvimento pessoal, pelo crescimento institucional, pelo envolvimento laboral projeto a projeto, tentando-se envolver os trabalhadores nos objetivos estratégicos empresariais, gerando expectativa de que o novo modelo de gestão pudesse propiciar mais felicidade por permitir maior retribuição monetária e espiritual.

Obviamente estes novos postulados geravam uma capacidade de legitimação do sistema capitalista menor do que aquele conjunto ideológico existente no período anterior, mas já não existia “a alternativa”, o capitalismo não precisaria mais se justificar para se legitimar. De toda sorte, os conjuntos ideológicos destes dois modos de gestão, desses dois espíritos do capitalismo, passam a conviver nos debates acadêmicos e não só nas áreas da administração de empresas ou da economia, mas também no campo do direito, aparecendo no Direito do Trabalho como uma oposição entre regulação estatal e flexibilização.

Esta oposição binária representa o pior momento na breve história do Direito do Trabalho no qual já não se discute a amplitude dos direitos e garantias (quantidade de anéis a serem cedidos para salvaguardar os dedos, ou seja, a quantidade de direitos suficiente para salvaguardar a continuidade do capitalismo, regime injusto por natureza por permitir a apropriação da mais valia); passa-se a discutir a própria necessidade de se manter os atuais patamares de proteção, não sendo poucos os que, inclusive dentro do poder judiciário trabalhista, passam a defender a precarização de tais direitos.

Desde a consolidação hegemônica do segundo espírito do capitalismo, com base na doutrina de valorização do capitalismo gerencial, desenvolveram-se mecanismos de gestão baseados no planejamento por objetivos baseados em valores como descentralização e meritocracia, atendendo às demandas dos próprios executivos   por maior autonomia em suas atividades e adoção da impessoalidade e da eficiência como critérios para promoções. No período subsequente, tal sistema de motivação dos executivos e de sedução dos demais trabalhadores, no sentido de adesão aos valores então defendidos, será estruturado a partir de teoria normativa[14] que, embora siga fundada no capitalismo gerencial, organiza a crítica às hierarquias empresariais instituídas pelo segundo espírito do capitalismo que, segundo a atual visão, conduziriam à excessiva e indesejável burocratização, em detrimento da lucratividade e da eficiência.

O novo sistema de legitimação capitalista busca a eficiência por intermédio da flexibilidade e pela defesa de um modelo em que empresas esbeltas, geridas por executivos, profissionais impregnados pela ideologia que se configurava hegemônica, trabalhariam em rede organizadas por equipes orientadas para a satisfação dos clientes e dos acionistas. Essa satisfação haveria deveria ser alcançada por intermédio da mobilização geral dos trabalhadores, seja através da motivação proveniente de seus líderes, seja através da precarização das relações na produção[15], que produzindo temor pela perda dos postos de trabalho induziria a subserviência à custa do aumento dos níveis de ansiedade no trabalho. A nova teoria da administração passa a pregar a utilização do assédio moral gerencial como estratégia empresarial.

A precarização laboral, a partir de então se constitui em estratégia organizacional cujo objetivo é, sobretudo, político no sentido de que visa um incremento na dominação, por intermédio de duas novas técnicas, complementares entre si, de organização do trabalho, a qualidade total e a avaliação individual de desempenho, ambas voltadas para o aumento da produtividade e da lucratividade.

A primeira técnica gerencial, a qualidade total institui complicados sistemas internacionais de certificação e de gestão por projetos, acompanhados de correlata alteração na modulação da estipulação salarial (pagamento por resultados, por produtividade, com inúmeras modalidades atípicas de remuneração, desde variadas formas de salário in natura até a constituição de complexo sistema de premiações por bônus ou no sistema de stock-options). De acordo com os cânones dessas teorias normativas as empresas deveriam manter um núcleo estratégico de trabalhadores considerados como essenciais e subcontratar, terceirizar, ou como prefere o jargão dos executivos “externalizar” boa parte das atividades empresariais. Essa nova técnica associada a tal modelo de gestão funda-se na busca de trabalhadores mais competentes, flexíveis, criativos e autônomos, a serem gerenciados por um coordenador, não por um chefe, como nos dois espíritos do capitalismo anteriores. Esse novo líder é o manager, que auxiliado por coachs ou team leaders[16] e por experts[17] referenciados em sistemas informatizados de controle, introduzem mecanismos sofisticados destinados a manter os funcionários em permanente estado de ansiedade produtiva, garantida por avaliações individuais, que se constituem na outra técnica de indução da dominação pela precarização laboral.

A segunda técnica, a avaliação individualizada das performances permite a maximização dos resultados, um maior controle parcelar dos tempos no processo produtivo, e um comprometimento, motivado pela ansiedade, com as metas e objetivos fixados tendo em vista a satisfação dos clientes e dos detentores dos meios de produção, preferencialmente vinculados a processos de remuneração variável como percentuais de participação nos lucros e resultados[18].

Esse sistema além de sequestrar a subjetividade dos trabalhadores vinculando seus interesses aos interesses da própria empresa permite a substituição de empregados mais experientes e com salários mais altos por trabalhadores mais jovens recém saídos das escolas técnicas ou das universidades, que não detém o conhecimento geral da produção e, em consequência, são mais facilmente controláveis[19]. As competências e habilidades que cada trabalhador consiga demonstrar nesta avaliação individualizada passam a ser mais importantes que os diplomas universitários específicos, surgindo o conceito de empregabilidade[20] como atributo pessoal, a ser individualmente buscado, seja por trabalhadores menos qualificados, seja por aqueles com maiores responsabilidades na estrutura funcional das empresas, tudo ampliando o mal-estar no trabalho, embora propiciando o bem-estar dos donos do capital.

A estandartização dos processos e sua formalização que caracterizavam o segundo espírito do capitalismo passam a sofrer inúmeras críticas, inclusive por possibilitar a existência inconveniente de um contra-poder sindical capaz de influenciar os ritmos da produção e por haver conduzido as empresas a uma indesejável estruturação burocrática e hierarquizada na qual tudo deveria ser planejado, nada relegado ao acaso. A transparência empresarial, o estabelecimento de regras impessoais nos regulamentos internos das empresas, o combate à discriminação pela introdução de mecanismos de combate à discricionariedade (isonomia salarial, tratamento igualitário) e de solução democrática das inevitáveis controvérsias decorrentes de relações de trabalho, de trato sucessivo e continuado, com base no Direito do Trabalho, passam a ser percebidos pelos teóricos do capitalismo gestionário globalizado inspirado pelo neoliberalismo como anacronismos prejudiciais (PERROT, PASQUIER, 2007).

Em substituição ao modelo de estruturação e de gestão empresarial característico da época em que o capitalismo precisava se justificar, a doutrina normativa gestionária que instaura o terceiro espírito do capitalismo propõe uma visão adhocrática (governança ad hoc dos processus) que possa integrar o aleatório e a incerteza nos processos decisórios. A ordem preestabelecida, fundada no Direito, é substituída por uma ordem submetida às perturbações internas e externas prováveis, na qual àquela divisão vertical do trabalho se superpõem o trabalho em equipe e a sobrevalorização da polivalência como atributos individuais da empregabilidade e da desejada “organização processual”.

A gestão por resultados, característica da primeira fase capitalista, e a gestão por objetivos, essencial ao segundo espírito do capitalismo, processos para os quais o direito laboral cumpre a funcionalidade de definir claramente os papéis, prerrogativas e deveres das partes dos contratos de trabalho, passam a ter eficiência questionada. Na ideologia que preside o terceiro espírito capitalista ambas perdem prestígio em face do gerenciamento por projetos apresentado como técnica mais eficiente na racionalidade da satisfação do cliente subordinada a uma lógica de satisfação do acionista, do dono do capital[21]. Nessa nova forma de planejamento o gerente do projeto não precisa necessariamente ser empregado da empresa, função muitas vezes delegada a consultorias externas e, por isso mesmo, alheias à tutela do Direito do Trabalho.

O referencial de competência de cada posto de trabalho passa a ser mediatizado pela sua contribuição à resposta à expectativa dos clientes[22] e dos acionistas, dentro de processos de criação de valor. Tal competência, como gesto mental, se inscreve, muito mais como uma perspectiva organizacional processual do que funcional. A satisfação das expectativas, tanto a dos acionistas, quanto a dos clientes, guardam relação ao modelo de organização, embora cada uma induza atitudes mentais e comportamentos diferentes, pois a primeira incide sobre os processos produtivos e seus resultados, enquanto que a segunda sobre as funções e órgãos dentro da empresa, compondo um novo sistema de produção, também denominado como acumulação flexível, caracterizado pela produção enxuta (lean production).

Essas novas formas de gestão e os desejos de maior autonomia e responsabilidades, de modo ambivalente, possuem alguma capacidade sedutora, já que o aumento de autonomia significa correspectivamente diminuição na subordinação, se não ao nível da realidade, pelo menos ao nível da percepção que o trabalhador tem a respeito de sua realidade. Mas mesmo assim, tal aumento de autonomia e de responsabilidade conquanto possam permitir uma ideia de trabalho mais interessante em comparação com o trabalho totalmente normatizado do espírito do capitalismo anterior vêm acompanhados de altos níveis de estresse e, de transtornos psico-sociais (CHAUVIÈRE, 2008), decorrentes de verdadeiros processos de acosso moral empresarial como consequência da frenética necessidade de serem atingidas as metas e as expectativas da empresa e de seus acionistas (ROCHEFORT, 2007: 57).

Quando o neoliberalismo se torna ideologia dominante, portanto antes da crise capitalista de 2008 que desnuda suas inconsistências, o processo de legitimação do capitalismo já restava bastante modificado. Aqueles direitos e garantias que haviam sido assegurados pelos pactos populista e social-democrata passam a ser considerados como supérfluos. Os direitos sociais, dentre os quais o Direito do Trabalho, que restaram ampliados como resposta às críticas anticapitalistas e aos movimentos sociais contestatórios dos anos sessenta e setenta passam a ser considerados como desnecessários, e não raras vezes, até como abusivos. Agora, inexistindo alternativa, o empresariado passa a defender abertamente a necessidade de se passar do bem-estar social ao bem-estar empresarial, ao argumento ideológico de que o primeiro e mais importante direito a ser assegurado seria o direito ao emprego e, para tanto, seria necessário um fortalecimento das empresas. Em todo o mundo se assistem processos de regressão no Estado de Bem-Estar Social para se constituir acelerado processo            de concorrência entre as nações no sentido de “atrair investimentos” estrangeiros,           e dentro de cada país entre as cidades que receberiam tais investimentos (LARROUTUROU, 2009: 70-125).

Aproveitando este movimento de reestruturação produtiva que implicava processos de deslocalizações empresariais, eufemismo pelo qual ficaram conhecidos os movimentos de fechamento de fábricas no centro capitalista e transferência de unidades produtivas para países de capitalismo periférico, em busca de lugares com custos de mão de obra mais baratos, os países passaram a precarizar ainda mais os direitos dos trabalhadores, em busca de alegada competitividade internacional.

Esse processo de precarização de direitos laborais, vislumbrável inclusive no Brasil não apenas no plano legislativo (COUTINHO, 2009), mas principalmente no plano da jurisprudência trabalhista, com vistas a ampliar o bem-estar empresarial (RAMOS FILHO; NEGRISOLI: 2009) terminou por ampliar o mal-estar no trabalho, multiplicando processos de assédio moral empresarial, decorrente dos métodos de gestão característicos do atual espírito do capitalismo.

  1. 3. O MAL-ESTAR LABORAL NO CAPITALISMO GERENCIAL

Ao tempo em que se considerava aconselhável justificar o capitalismo, na busca de legitimação da legitimação permanente deste sistema, as relações entre as classes sociais possibilitaram a discussão ampliada das condições de trabalho, nelas incluídas não apenas as preocupações com a prevenção de acidentes laborais e dos eventuais prejuízos à saúde em face de agentes insalubres, mas também preocupações com a saúde mental dos trabalhadores, ainda de que de modo restrito aos países do centro capitalista ou aos pólos capitalistas mais desenvolvidos de cada país periférico individualmente considerado.

O mal-estar causado pelos sistemas de vigilância permanente do processo produtivo e das condutas individuais dos trabalhadores cadenciando o ritmo da produção característico das relações capitalistas de trabalho até quase o fim do século passado, restou ampliado pelas novas formas de gestão peculiares ao capitalismo gerencial.

Aquele mal-estar inerente às relações de subordinação, decorrentes da complexa rede de controle dos empregados por parte de chefias e supervisões superpostas que caracterizava a hierarquia empresarial fordista sofre incremento na virada do século na medida em que agrega a tais fatores nocivos à saúde dos trabalhadores, novos elementos, vinculado principalmente à sua saúde mental, decorrente da superposição de ansiedades, consistente na fixação de metas individuais[23] e coletivas a serem atingidas em cada unidade organizacional, sempre de modo competitivo, cobrando dos demais o cumprimento de objetivos e padrões de qualidade, todos vinculados à satisfação dos acionistas e dos clientes, preferencialmente nesta ordem, como foi detalhado no tópico anterior.

O controle parcelar do tempo e o cadenciamento das rotinas na produção aliados ao sistema de premiação por produtividade visavam, nas fases anteriores do capitalismo, manter níveis controlados de ansiedade nos empregados para manter o ritmo de produção.

Estimulados pela remuneração variável[24], instrumento de manipulação subjetiva produtor de ansiedade[25] introduzido pelo segundo espírito do capitalismo, esperava-se que os empregados superassem o esgotamento e continuassem produzindo, no ritmo e nas condições que lhes havia sido determinados. Esse modo de gestão aliado à rede de proteção social da qual o Direito do Trabalho é uma das manifestações, caracterizaram ao longo do século XX o modelo fordista de produção fundado na intensificação, na produtividade e na economicidade[26].

Nos novos modos de gestão implementados na virada do século persiste a repetitividade do trabalho taylorista-fordista, mas de forma “desespecializada” pela adoção do princípio da polivalência dos empregados, capturando a subjetividade dos trabalhadores, pelo engajamento desses aos objetivos empresariais[27], e não apenas nos ambientes fabris, mas em todos os setores econômicos, inclusive nos setores de prestação de serviços, induzindo lealdades mediante sistema sofisticado de coações diversas[28].

Embora continuem provocando ansiedade pela possibilidade de perda dos empregos caso as expectativas dos empregadores não sejam atingidas, como nas fases capitalistas anteriores, os modernos sistemas de controle amplificam tal ansiedade fundamentalmente por dois motivos ambos configurando assédio moral institucional. Primeiro em razão do aumento da intensidade do trabalho[29]. Depois, em função das possibilidades de controle difusas pela introdução de novas tecnologias e de sistemas informatizados de gestão.

Ao privilegiar a contratação de trabalhadores polivalentes, voltados para o atendimento dos interesses dos proprietários dos meios de produção e dos clientes, as condições da prestação laboral implicam mais altas taxas de ansiedade, em comparação ao período anterior, pela intensificação do trabalho implícita a tal sistema. De fato, os para além do cliente externo e de seus protocolos de qualidade, auditores e controllers, novos métodos de gestão construíram o conceito de cliente interno, pelo qual cada unidade produtiva é considerada como fornecedor da seguinte, de modo que eventuais atrasos ou imperfeições no trabalho prejudicam o cliente interno e, algumas vezes o sistema de remuneração dos integrantes daquela unidade produtiva consumidora do resultado do trabalho da unidade produtiva fornecedora[30]. Tendo em vista que cada unidade produtiva é ao mesmo tempo cliente interno e fornecedora de várias outras unidades produtivas, resta amplificado o sistema interno de cobrança de resultados, intensificando não apenas o trabalho de cada empregado e de sua equipe, mas intensificando também os níveis de estresse e de ansiedade difusos em todo o processo produtivo.

O aumento da ansiedade no trabalho é garantido também pela instalação de sistemas integrados de gestão, como as várias versões dos chamados enterprise resource plannings, mais conhecidos pela sigla ERP[31], e também por inúmeras formas sofisticadas de aferição da produtividade, desde a individual, passando pela medição da produtividade dos setores, das unidades produtivas até o nível mais geral da rentabilidade aos acionistas. Essas ferramentas de gestão acabam induzindo decisões empresariais sob o manto da racionalidade científica, como se “o sistema” estivesse impondo comportamentos e deliberações, dentre as quais as relativas à resilição de contratos de trabalho em nome dos interesses da empresa, amplificando a ansiedade dos empregados, os níveis de estresse (CATALDI, 2002) e o mal-estar laboral.

  1. 4. O ASSÉDIO MORAL E A MORAL DO ASSÉDIO EMPRESARIAL

O conjunto de consequências para a saúde mental dos trabalhadores decorrentes das novas práticas que caracterizam este capitalismo gerencial que prescinde de legitimação vem recebendo cognominações variadas, como mobbing, assédio moral organizacional, síndrome de burn-out[32], acosso psíquico empresarial, bossing, bullying, assédio psicológico institucional ou terror psicológico patronal, dentre outras, muito embora a mais abrangente seja a de assédio moral empresarial, por denotar deliberada postura empresarial na gestão dos recursos humanos.

Essa prática gerencial globalizada decorre de situações de subordinação nas quais as novas e modernas formas de gestão mencionadas ao longo deste artigo são implantadas. Por tal razão, se faz sentido aludir-se à possibilidade teórica de existir assédio moral horizontal ou assédio moral vertical ascendente[33] nos demais tipos e espécies de acosso psíquico, no assédio moral empresarial tal classificação perde sentido. Bem ao contrário. Como no assédio moral empresarial o acosso psíquico sempre se dará em decorrência da subordinação, mencionada classificação ao invés de facilitar a compreensão do fenômeno e suas causas com vistas à repressão de            tais práticas ou à reparação posterior de suas vítimas, acaba contribuindo para ocultar o caráter classista desta prática que gera mal-estar laboral para potencializar o bem-estar patronal.

Do mesmo modo, conquanto faça sentido buscar-se a identificação de características comuns aos indivíduos que, por perversão, pratiquem assédio moral tomado como categoria genérica[34], no caso do assédio empresarial a identificação de um eventual perfil psicológico do sujeito ativo do acosso psíquico empresarial apresenta-se inútil. Mesmo que se considere que alguns chefes ou supervisores, por algum defeito de personalidade, possam apresentar certas características aptas a definir um perfil psicológico propício ao acosso perverso de subalterno, no assédio moral empresarial a impressionante frequência com que o fenômeno se apresenta nas relações de trabalho contemporâneas não deriva de características pessoais dos superiores hierárquicos[35]. De fato, muitas vezes os próprios agentes do assédio moral empresarial são eles mesmos vítimas do processo gerencial de assédio empresarial decorrente do cumprimento de metas e objetivos que lhes são impostas figurando como vítimas e algozes a um só tempo, do assédio decorrente dos métodos de gestão implantados nas empresas e da ideologia de fundo que os fundamentam.

Sendo assim, também não faz muito sentido buscarem-se elementos psicológicos que permitissem um estudo de vitimologia[36] no assédio moral empresarial. Ainda que fizesse algum sentido perquirir-se sobre eventual possibilidade da vítima sofrer de algum tipo de mania de perseguição nos casos de assédio moral perverso, tal perquirição não faria sentido no assédio moral empresarial principalmente por            três razões. Primeiramente porque se o assédio moral empresarial decorresse de características doentias das vítimas, como esquizofrenia ou depressão, se faria necessário concluir pela existência de uma epidemia dessas doenças na sociedade capitalista contemporânea. Depois, ainda que houvesse tal epidemia de esquizofrenia não bastaria apenas constatá-la, remanescendo a necessidade de buscar-lhe as causas. Por fim, porque da mesma forma que não se pode culpabilizar as vítimas de             outros tipos de violação de direitos fundamentais vinculados ao trabalho (como a neo-escravidão[37] e a constrangimento sexual[38]), por suas eventuais condutas permissivas, também não se pode atribuir às vítimas do acosso psíquico empresarial a culpa por terem sido molestadas. A violência no caso do assédio moral empresarial é estrutural, decorre não apenas do poder diretivo dos empregadores, mas acima de tudo, deriva dos modos de gestão característicos do capitalismo contemporâneo.

Essas novas formas de gestão implicam práticas institucionais reiteradas de ampliação dos níveis de ansiedade nos empregados, seja quanto ao estabelecimento de metas, seja quanto à intensidade imposta na prestação laboral e seus consequentes mecanismos de controle que terminam por causar sérios transtornos à saúde dos subordinados. Nesse sentido, o próprio modo de gestão, caracterizado por micro-traumatismos ao longo de determinado período[39], configura a reiteração inerente ao conceito dessas práticas empresariais antijurídicas, aqui cognominadas como assédio moral empresarial.

Também não contribui para a compreensão do caráter quase universalizado dos processos de assédio moral empresarial na atualidade das relações de emprego fundadas nos modernos métodos de gestão, a tentativa de diluir sua existência na história, como sendo algo que sempre existiu no capitalismo. Resta evidente que as relações de trabalho capitalistas, fundadas em poder diretivo derivado de violência econômica, desde sempre causaram ansiedade, estresse, e desconforto naqueles que se viam na contingência de precisar vender a força de trabalho para sobreviver. Todavia, nos atuais métodos de gestão empresarial esta violência psíquica se reveste de características muito diferentes, por se constituir em estratégia empresarial fundada no medo[40] para induzir a submissão dos empregados aos objetivos da empresa, visando maximizar lucros.

De outra parte, se nas demais espécies de assédio moral a intencionalidade é fundamental, o mesmo não ocorre no assédio moral empresarial. De fato, nas hipóteses de assédio moral estratégico resulta razoável a exigência da comprovação de dolo do sujeito ativo do assédio no sentido de constranger a vítima a solicitar sua auto-exclusão da empresa. Do mesmo modo, no caso do assédio moral perverso, parece natural que a vítima deva comprovar que a atitude do pretenso assediador visasse lhe causar transtornos psíquicos, destruindo ou visando destruir sua saúde mental. Já no assédio moral empresarial essa discussão sobre a intencionalidade carece de importância.              O que causa o dano psíquico não é nem a perversão do agente, nem uma estratégia patronal visando excluir o empregado da empresa, mas a maneira pela qual a empresa é gerida. Não se está a sustentar que os empregadores não tenham direito ao lucro no âmbito de relações de trabalho capitalistas. Isso seria uma incongruência uma vez que tais relações se baseiam exatamente na autorização concedida pelo Direito do Trabalho para que a maior parte do resultado do trabalho do empregado seja apropriada de modo gratuito pelo empregador, sob a forma de mais-valia. O que se pretende sublinhar é que o aumento da intensidade do trabalho e dos níveis de ansiedade dele decorrente, nas condições preconizadas pelos métodos de gestão contemporâneos do neoliberalismo e do capitalismo que prescinde de justificação, por sua reiteração, gera circunstâncias de assédio moral empresarial. Sendo assim, não faz sentido perquirir-se sobre eventual intencionalidade de causar o dano. O dano é objetivo, decorre do capitalismo gerencial, cuja moral se configura pela busca do acréscimo da produtividade e da rentabilidade. Essas novas formas de gestão permitiram que, nos últimos trinta anos, o acréscimo de produtividade das empresas fosse maior do que nos duzentos anos anteriores, período durante o qual a participação dos salários no PIB dos países fosse significativamente reduzida, mercê de inúmeras precarizações (LARROUTUROU, 2009: 102 e segs.) e do aumento do mal-estar laboral, com graves consequências para a saúde dos trabalhadores.

Esforço significativo é desenvolvido por parte da doutrina para sustentar que o exercício arbitrário do poder diretivo seria algo essencialmente distinto do acosso psíquico empresarial. Segundo esta linha de argumentação, embora ambos possam causar dano ao empregado, não caracterizariam assédio moral empresarial as  práticas empresariais arbitrárias, ainda que se reconheça que as mesmas “têm papel preponderante na saúde psicológica do ambiente de trabalho, e já está cientificamente provado que um ambiente de trabalho onde reina a denominada ‘administração por estresse’ é laboratório de práticas eticamente nefastas, criadores de bodes expiatórios para desafogo das frustrações coletivas e individuais (GUEDES, 2003: 163), por considerar distinta e diversa a motivação da violência praticada. Ao pretender construir uma teorização unitária para as várias espécies de assédio moral, tais esforços doutrinários acabam invisibilizando certas práticas patronais atentatórias à saúde mental dos empregados confundindo duas espécies distintas do gênero assédio moral. O assédio moral perverso, consistente na administração por injúria, agredindo verbalmente os subordinados hierárquicos, criando um ambiente de trabalho hostil e tenso, difere bastante do assédio moral empresarial. Neste os métodos de gestão implantados visam maior aproveitamento da mão de obra, impondo condições de trabalho mais favoráveis aos interesses da empresa e de seus acionistas ou controladores. Na outra espécie, no assédio moral perverso, o abuso do poder diretivo embora também vise, por meio de insultos, aumentar a intensidade do trabalho, decorre não dos métodos de gestão, mas de exercício arbitrário do poder diretivo.

As perspectivas teóricas que confundem as duas primeiras espécies de assédio moral com o assédio moral empresarial, não percebem que naquelas o objetivo do assédio seria “molestar a vítima”, seja para constrangê-la a se desligar da empresa (estratégico), seja para destruí-la psiquicamente (perverso) praticando violência psíquica[41]. No caso do acosso moral empresarial, o objetivo seria outro: apenas aumentar a produtividade dos negócios, em beneficio dos detentores dos meios de produção e dos clientes, à custa do aumento do mal-estar laboral. Essa seria “a moral do capitalismo gerencial” (GAULEJAC, 2009: 236).

Sendo assim, tanto a intencionalidade de causar dano como a motivação do agressor ao praticar os atos que atingem a esfera da saúde mental dos empregados não são significativos para a materialização do assédio moral empresarial ou do direito à reparação dele decorrente. O ato é anti-jurídico qualquer que seja a motivação da empresa que pratica ou que permite que se pratique em seu nome o assédio moral empresarial, ou seja, ainda que esteja “apenas” visando o aumento de sua eficiência ou sua lucratividade, diferentemente do que ocorre nas outras modalidades de assédio moral. Tanto no assédio estratégico que busca forçar a vítima a se auto-desligar                  da empresa, como no assédio perverso, por intermédio do qual se busca destruir psicologicamente a vítima, o direito à reparação decorre da motivação e do dolo             no ato agressor e de sua comprovação. No assédio moral empresarial a intenção e a motivação são irrelevantes. O que importa é o resultado, o ambiente laboral com potencialidades de criar e de desenvolver doenças psíquicas pelo incremento nos níveis de ansiedade, de frustração e de estresse, decorrente dos modos de gestão empregados.

Em consequência, no caso do assédio moral empresarial, a prova do dano efetivo também não é essencial, ou seja, não é a existência efetiva do dano que transforma um ato lícito de gestão em prática ilícita de acosso psíquico empresarial.

O que caracteriza o assédio moral empresarial é a própria prática de métodos de gestão que se configuram com acosso por parte do empregador ou de seus prepostos, ainda que por intermédio de impessoais práticas empresariais. Assim, é a conduta concreta da empresa que configura o assédio empresarial e não o efeito de tais práticas na subjetividade dos empregados[42], de modo que, ainda que ineficiente para destruir psiquicamente alguns dentre os seus empregados, o acosso psíquico empresarial será sempre antijurídico.

Por fim, parte da doutrina visando dificultar ou inviabilizar a reparação dos danos causados pelos “modernos” métodos de gestão passa sustentar a necessidade de comprovação por parte da vítima da relação entre o efeito e a causa, entre as condutas de acosso moral empresarial e o resultado gerado em cada empregado individualmente considerado[43], de modo a verificar se da ação do empregador decorreram as consequências para a esfera psíquica do empregado. Embora para as demais espécies de assédio moral o nexo causal e a comprovação das consequências na esfera psicológica da vítima façam algum sentido, no caso do assédio moral empresarial tais exigências são incabíveis, pois não é a existência do dano efetivo em todas as vítimas que caracteriza o psicoterrorismo empresarial, mas a simples existência de práticas de gestão voltadas ao incremento dos níveis de estresse e de ansiedade lesivas à saúde mental dos empregados. Neste tipo de assédio moral institucional as práticas impostas pelo capitalismo gerencial impingidas aos empregados sujeitos àquelas diretrizes poderão ter impactos e intensidades distintas em cada trabalhador, individualmente considerado, causando não apenas doenças emocionais, como o estresse, a depressão ou a síndrome de burnout, mas também doenças de outra natureza, como problemas glandulares, digestivos ou alimentares, como anorexia ou a obesidade[44].

Em resumo, embora o assédio moral empresarial seja uma das espécies de assédio moral que vêm caracterizando as relações capitalistas de trabalho no início do presente século, por decorrer de práticas gerenciais unilaterais de amplitude coletiva, com natureza jurídica de regulamento de empresa, não contribui para                     a diminuição da complexidade de sua análise a tentativa de construção de uma dogmática unitária para todas as suas manifestações concretas. As demais espécies de assédio moral trabalhista, seja o estratégico, seja o perverso, objetivam interferir na saúde psíquica de um empregado ou de um número restrito de pessoas, no âmbito laboral. No que pertine ao assédio moral empresarial, analisado ao longo deste  artigo, por decorrer de métodos de gestão fundamentados na ideologia neoliberal e instrumentalizados pelo capitalismo gerencial, sua dogmática implica considerações de ordem diversa, compreendendo o fenômeno em sua dimensão coletiva, para explicar a intrigante quantidade de denúncias de práticas de assédio moral empresarial na contemporaneidade.

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[1] Esta constatação empírica, compartilhada por juízes, advogados, sindicatos patronais e de trabalhadores, por membros do Ministério Público do Trabalho e por funcionário dos órgãos estatais encarregados de velar sobre as condições de trabalho em sentido amplo, não objetiva tornar desimportantes as demais formas de assédio moral laboral, mas simplesmente, separando a análise da espécie mais frequente, permitir maior aprofundamento teórico sobre a questão.

[2]El espíritu del capitalismo debe responder a una exigencia de autojustificación, sobre todo para poder resistir a la crítica anticapitalista, lo que implica un recurso a convenciones de validez universal en cuanto o que es justo e injusto […] El espíritu del capitalismo proporciona, al mismo tiempo, una justificación al capitalismo (que se opone a los cuestionamientos que pretenden ser radicales) y un punto de apoyo crítico, que permite denunciar la separación entre las formas concretas de acumulación y las concepciones normativas del orden social” (BOLTANSKI, CHIAPELLO, 2002: 68)

[3] Em vários outros países de capitalismo periférico, dentre eles o nosso, os direitos sociais em geral e o Direito do Trabalho em particular se inscrevem dentro do chamado “compromisso populista” entre as classes sociais, considerado como resposta das elites ao ideário redistributivistas.

[4] O núcleo comum do Direito do Trabalho decorre das relações de trabalho capitalistas e tem nelas seu pressuposto, razão pela qual se constitui como um direito capitalista por definição (JEAMMAUD, 1980). Tal constatação óbvia nem sempre é bem compreendida, razão pela qual cobra atualidade denominá-lo como Direito Capitalista do Trabalho, não para diferenciá-lo de um eventual direito não-capitalista, mas para enfatizar sua característica fundante.

[5] O golpe militar de 1964 que desencadeou cruel repressão sobre os movimentos de esquerda eliminou as resistências sindicais possibilitando, ainda em 1967 a primeira grande flexibilização do Direito do Trabalho em nosso país, com a criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, tornando mais barato para os empregadores a resilição dos contratos de emprego. Resumidamente: o regime do FGTS, introduzido como opcional, permitia que aos empregados “optantes” pela nova sistemática não fosse mais assegurada a indenização por tempo de serviço prevista na CLT, consistente em um mês de salário para cada ano de trabalhado, valor total que haveria de ser pago em dobro aos trabalhadores com mais de dez anos de contrato laboral. O novo sistema foi imposto pelas empresas como condição para as novas contratações de modo que, aos contratados no novo regime (ou aos que optassem por migrar do antigo sistema para este) o empregador deveria apenas “liberar” os depósitos existentes em contas bancárias vinculadas ao sistema, eximindo-se do pagamento da indenização por terminação unilateral dos contratos de trabalho.

[6] Nesse período foram necessários esforços de relegitimação do sistema nos países democráticos por força das críticas formuladas pelos movimentos pacifistas nos EUA, pelos movimentos de libertação nacional em vários países do então denominado como terceiro mundo e pelos movimentos da juventude e de trabalhadores no continente europeu. Para louvar as vantagens do sistema capitalista em face do sistema alternativo e buscando demonstrar que era possível atender-se aos direitos sociais sem prejuízo dos direitos civis e políticos, o Direito do Trabalho havia se afirmado internacionalmente durante o período conhecido como “os trinta gloriosos” anos de desenvolvimento do Estado intervencionista chega ao seu ápice regulatório nos países do centro capitalista.

[7]El segundo espíritu del capitalismo es indisociable de los dispositivos de gestión de las posibilidades promocionales en las grandes empresas, de la puesta en marcha de la jubilación redistributiva y de la extensión, a un número cada vez mayor de situaciones, de la forma jurídica del contrato de trabajo asalariado, de tal forma que los trabajadores puedan beneficiarse de las ventajas asociadas a esta condición. Sin estos dispositivos, nadie habría podido creer realmente las promesas del segundo espíritu” (BOLTANSKI, CHIAPELLO, 2002: 69).

[8]’A cet égard, il paraît plus pertinent d’utiliser le terme ‘encadrement’ plutôt que celui inhérente à tout rapport

de classe, et possède l’avantage d’être construit autour de celui de ‘cadre’. Pour parfaire le parallélisme, on propose d’appeler ‘cadrisme’ le système qui correspond au rapport d’encadrement, comme on dit ‘capitalisme’ à partir de ‘capital’” (BIDET, DUMÉNIL, 2007 : 105)

[9] Esse autor desenvolve o pioneiro conceito segundo o qual os executivos seriam a “mão visível do mercado”, corrigindo distorções, e influindo sobre a realidade (CHANDLER, 1998), inaugurando de certa forma a literatura normativa sobre gestão empresarial que caraterizará o período subsequente.

[10] “Galbraith cunhou uma expressão para caracterizar esse fenômeno: ‘simbiose burocrática’. A tecnoestrutura das grandes empresas procura influenciar sistematicamente as políticas públicas, provendo os técnicos e nomeando políticos que tomarão as decisões relevantes para o desenvolvimento das suas atividades privadas. Com a “simbiose burocrática” forma-se um quadro de crescente interação entre grupos privados e funcionários governamentais que acaba contaminando as políticas de governo e colocando-as a serviço de interesses especiais e particulares. Isso é um fato, um fenômeno da vida tanto das sociedades desenvolvidas como de países em desenvolvimento, como o nosso. Os quadros técnicos se movimentam das grandes empresas para o governo e vice-versa, configurando uma situação de captura das alavancas decisórias governamentais” (SUPLICY, 2002)

[11] Expressão utilizada para caracterizar a versão mais fundamentalista da ideologia neoliberal (RAMOS FILHO, 2008).

[12] “Estruturava-se, ainda que de modo incipiente [nesta época], o processo de reengenharia industrial e organizacional, cujos principais determinantes foram decorrência: I – Das imposições das empresas transnacionais, que levaram à adoção, por parte de suas subsidiárias no Brasil, de novos padrões organizacionais e tecnológicos, em maior ou menor medida inspirados no toyotismo e nas formas flexíveis de acumulação; II – Da necessidade, no âmbito dos capitais e de seus novos mecanismos de concorrência, de as empresas brasileiras prepararem-se para a nova fase, marcada por forte ‘competitividade internacional’; III – Da necessidade de as empresas nacionais responderem ao avanço do novo sindicalismo e das formas de confronto e de rebeldia dos trabalhadores que procuravam estruturar-se mais fortemente nos locais de trabalho, desde as históricas greves do ABC paulista, nos pós-78 e também em São Paulo, onde era significativa a experiência de organização de base nas empresas” (ANTUNES, 2006 :18)

[13] O sistema taylorista que no fordismo concebia a empresa baseada em estratificação de tarefas, em trabalhadores com especializações rígidas, hierarquizações, em atividades repetitivas e sincronizadas em um tempo controlado para a aceleração da produção e a redução de custos, na busca de maior eficiência, passa a conviver – às vezes na mesma empresa – com o que foi chamado de toyotismo ou de pós-fordismo. Exatamente pela ocorrência da simultaneidade entre os dois métodos de gestão é que se prefere a estas duas expressões, outra: a expressão neofordismo, pois as formas tradicionais de gestão não são substituídas por outras, mais modernas, e sim, passam a coexistir.

[14] Ao invés de descrever os fenômenos que observa, as teorias normativas da economia e da administração de empresas descrevem o que “deveria ser” uma administração eficaz, introduzindo visão de mundo diferenciada coerente com a ideologia de fundo que preside aquele contexto histórico, o neoliberalismo. Sob o manto da neutralidade, imanente à concepção tradicional de ciência, opções políticas são apresentadas como decorrentes da natureza das coisas e da racionalidade que deve presidir a gestão, seja pública,            seja privada.

[15] A globalização da economia e as transformações nos sistemas produtivos alteraram profundamente as relações no espaço da produção, neste período. Estas relações são de dois tipos: as relações de produção, contratualmente estabelecidas entre o capital e o trabalho no marco da regulação estatal (e que constituem no seu conjunto a relação salarial), e as relações na produção que governam o trabalho concreto realizado pelos empregados durante o dia de trabalho, relações entre trabalhadores, destes com supervisores, com gestores, segundo suas normas e regulamentos – a “cultura da empresa”. Estes dois tipos de relações, sendo indissociáveis, têm lógicas diferentes e em cada um deles recai de forma diferente o impacto das transformações recentes. Assim, a flexibilização das relações de produção significa invariavelmente a precarização da relação salarial, enquanto a flexibilização nas relações de produção pode significar maior autonomia do processo de trabalho. De toda sorte, as mudanças que o capitalismo mundial continua a experimentar afetam o relacionamento entre as duas categorias acima (RAMOS FILHO, 2009).

[16]Le team work ou travail en groupe constitue le cœur du système dans l’organisation du travail. Il repose sur la responsabilité collective du groupe, la polyvalence des membres du groupe, l’invention du team leader […] Le team leader nommé parfois moniteur, chef de groupe, responsable d’unité est un collègue, choisi par le groupe ou l’encadrement, qui assure l’interface avec le reste de l’usine ou du service, sans avoir un pouvoir hiérarchique sur ses pairs. Il répartit les tâches, assure le suivi de production et de la qualité, gère les arbitrages entre différents indicateurs de performance affichés dans l’atelier […] Il existe également des tableaux d’indicateurs communs à différents groupes d’un même process.”(ROCHEFORT, 2007 : 56-57).

[17] A visão dos líderes possui “las mismas virtudes que el espíritu del capitalismo, porque garantiza la adhesión de los trabajadores sin tener que recurrir a la fuerza y otorga un sentido al trabajo de cada cual.” O termo executivo cai em desgraça, vinculado a burocracia, substituido por manager, designando “todos aquellos (con) gran capacidad para la animación de un equipo y el manejo de las personas, en contraposición con los ingenieros, más centrados en la técnica”, preparados para as incertezas e para a complexidade dos tempos atuais. “Extraen la autoridad que hace de ellos unos ‘líderes’ de sus cualidades personales y no de una posición estatutaria. (…) Los managers son intuitivos, humanistas, inspirados, visionarios, generalistas y creativos.” Existem ainda os coachs – que desenvolvem os potenciais do pessoal da organização – e os experts – que cuidam de saberes muito especializados e imprescindíveis (BOLTANSKI, CHIAPELLO, 2002: 125).

[18] No Brasil, a participação nos lucros e resultados, sob o nome de PLR, “introduziu-se definitivamente nos setores mais dinâmicos da economia brasileira. Nas montadoras de automóveis ela é item recorrente nas negociações sindicais, capaz de rivalizar em importância com a fixação de reajustes salariais na respectiva data-base. Tanto os órgãos de representação dos trabalhadores (sindicatos e comissões de fábrica), quanto as empresas analisadas são unânimes em apontar seus benefícios, embora muitas vezes por razões diversas. Para os primeiros, a PLR é uma oportunidade de ganho extra capaz de compensar em certa medida as dificuldades de aumento salarial, além de propiciar uma maior aproximação por parte do sindicato das questões internas às empresas, bem como dos próprios trabalhadores. Para as empresas é oportunidade de redução de custos, de flexibilização do sistema remuneratório e, também, de articulação da forma de retribuição do trabalho com os mecanismos de gestão típicos das empresas enxutas” (CAMPINHO, 2008: 154).

[19]Pour les mettre en place, il faut se débarrasser de la conception traditionnelle de la qualité que est indissociable de la compétence et de l’expérience de métier. Le gens de métier seront donc ‘mis au placard’ pour neutraliser leur pouvoir critique et remplaces par des gestionnaires sans connaissances techniques, jeunes e malléables, de niveaux bac+2, censés contrôler chez les sous-traitants une qualité … dont ils ne connaissent pourtant pas les ressorts techniques” (DEJOURS, 2006 : 60).

[20]Ainsi, surgit e se développe la notion de compétence en tant qu’outil de GRH. Le concept de compétence apparaît comme une combinaison dynamique et complexe de savoirs (connaissances théoriques) de savoir-faire (connaissances pratiques) et de savoir-être (comportements) concentrés dans une action et adaptés aux exigences d’une situation. C’est la possibilité pour un sujet de mobiliser ce qu’il sait et sait faire pour agir dans un contexte donné. De plus, les compétences professionnelles propres d’un individu doivent être transférables dans divers contextes d’emploi” (GUERFEL-HENDA, 2007 : 146).

[21]Il s’agit de ‘désautocentrer’ les actions individuelles (effet de la bureaucratie) pour les auto-eco-recentrer en une action collective destinée à répondre au mieux aux attentes des actionnaires en répondant au mieux à celles des clients. A cet effet les postes de travail ont été revisités et réécrits en termes de signes de compétence distribués en niveaux selon les domaines d’activité requis par le poste, ce qui permet d’évaluer la manière dont le titulaire du post répond, à son poste, aux attentes des clients et au-delà des actionnaires” (BRICE, MARCQ, 2007: 135).

[22] Para os efeitos aqui pretendidos, retenha-se que a corporate governance que, com o neofordismo vem caracterizar o terceiro espírito do capitalismo visava controlar apenas os altos dirigentes, não mais com base em sanções ou recompensas, mas com a motivação e implicação das pessoas, em processo de mobilização permanente em uma das variações possíveis do chamado “foco no cliente”.

[23]Capté par une ´liberté d´action´ entièrement vectorisée par l´entreprise, poussé para l´idéologie de croissance à toujours aller au-delà de résultats personnels mécaniquement et froidement mesurés sur des échelles arbitraires, et ainsi forcément débordé à terme dans ses capacités maximales, éventuellement surveillé dans son moindre clic par l´ordinateur incontournable que ´isole de ses collègues, avec lesquels il se trouve en compétition de gré ou de force, le travailleur est enfermé dans sa solitude existentielle par la ‘guerre de tous contre tous’ … C´est ainsi que le stress étend son empire, poussant déjà certains salariés au suicide” (MONESTIER, 2009 :140).

[24] Muda-se, portanto, a própria forma de ser da subordinação, que passa a contar cada vez mais com o self-management de cada operário ou, no novo léxico, colaborador. As técnicas e os fatores que impulsionam essa mutação são diversos, podendo-se incluir desde coações tradicionais relacionadas ao amplo exército industrial de reserva, até avanços tecnológicos mais recentes ligados à microeletrônica, que possibilitam novas formas de controle. Porém, a ênfase maior deste trabalho será relacionada a um aspecto específico: a mudança no rígido padrão de remuneração fordista com a recente regulação de uma forma mais flexível de pagamento, ligado principalmente ao cumprimento de metas por parte dos trabalhadores (CAMPINHO, 2006: 61).

[25] “A ansiedade responde então aos ritmos de trabalho, de produção, à velocidade e, através desses aspectos, ao salário, aos prêmios, às bonificações. A situação do trabalho por produção é completamente impregnada pelo risco de não acompanhar o ritmo imposto” (DEJOURS, 1992: 73).

[26]“A intensificação consistia em reduzir o tempo da produção, com a utilização rápida dos componentes e matérias primas e imediata disponibilização da mercadoria para compra. A produtividade se traduzia               na otimização da capacidade produtiva de cada trabalhador, ou seja, principalmente acelerar o trabalho com a imposição do ritmo pela esteira. E a economicidade visava reduzir o volume da matéria em curso, com a oferta e venda da mercadoria antes do pagamento dos salários e das matérias-primas” (ARAUJO, 2006: 49).

[27] O neofordismo se utiliza de novas técnicas de engajamento, dentre as quais se encontram os programas de incentivos à criatividade dos empregados e às sugestões para aumento da produtividade, dando a idéia de que o trabalhador está inserido na empresa, fazendo parte do processo produtivo e com “conhecimento” da produção, configurando-se em “novo patamar de apropriação gratuita das forcas naturais de trabalho social, sem nenhum custo para o capital” (ALVES, 2000: 35).

[28] A nova economia provoca um grau imenso de competitividade e de insegurança na empresa. Outrossim, pela uniformidade que demanda, gera uma intolerância com a diferença, com aquele que se afasta do padrão esperado pela empresa, que discorda, contesta, denuncia, pois é do novo estado de coisas a submissão e a obediência. De outro lado, há um acúmulo de atribuições, de novas tarefas, a um mesmo empregado, de quem se espera uma polivalência; fonte de economia de custos, vez que evita a contratação de outros obreiros para cumprirem a atividade por ele desenvolvida (MENEZES, 2003: 293).

[29] “En effet, depuis le début des années 1980, à la suite d’innovations dans les organisations de travail, les pénibilités déclarées par les salariés sont en augmentation très nette, tan sur le plain des efforts physiques (port de charges lourdes, mouvements répétitifs, expositions à des nuisances, etc.) qu’en termes de charge mentale (vigilance constante, polyvalence imposée, situations de tensions avec les collègues ou le public …). Contrairement à une représentation du travail moderne comme ‘dématérialisé’ et allégé grâce aux progrès technologiques, ces résultats rappellent que les pénibilités sont loin d’avoir disparu. Dans nombre de secteurs, elles s’accroissent même, sous l’effet de la règle d’urgence et du resserrement drastique des contraintes de temps(raccourcissement des délais, fréquentes interruptions des tâches, obligations de toujours se dépêcher, exigence de réponse immédiate à la demande du marché)” (HÉLARDOT, 2009 : 22).

[30]Chaque unité de production devient ‘fournisseur’ de la suivante qui est son ‘client’ et qui manifeste donc ses exigences, impose ses contraintes et formule ses récriminations” (DANIELLOU, 2006 : 30).

[31] ERP é a denominação genérica de programas que permitem a integração dos diversos sistemas informáticos de várias unidades produtivas eu um banco de dados comum, permitindo rápida troca de informações visando ampliação do retorno financeiro. Cada setor se transforma em cliente interno e fornecedor de outros setores, gerando rotinas pré-estabelecidas não apenas para acelerar os processos produtivos, diminuindo a burocracia, traça de mensagens, processos decisórios sem importância estratégia, mas também para controlar a qualidade dos trabalhos prestados http://wnews.uol.com.br/site/noticias /materia_especial.php?id_secao=17&id_conteudo=452;

[32]Burn Out“, expressão inglesa: aquilo que deixou de funcionar; derivado de gíria, significa aquele que se estragou pelo uso. Esta doença caracteriza-se pelo esgotamento físico, psíquico e emocional, em decorrência de trabalho em condições muito estressantes, provoca distúrbios mentais e psíquicos que tem como efeito consequências como: stress, hipertensão arterial, perda de memória, ganho de peso e depressão, entre outros problemas.

[33] A doutrina classifica do assédio moral em horizontal, quando praticado por colega de mesma hierarquia funcional, ou vertical, quando a situação de assédio envolve pessoas com níveis funcionais distintos. Quando praticado por subordinado em face de superior hierárquico, na exclusiva hipótese de assédio moral perverso, é chamado de assédio moral vertical ascendente. Quando praticado por superior em face de subordinado, tem-se o assédio moral vertical descendente (RUFINO, 2006).

[34] “O perfil do assediador moral, em princípio, é o de uma pessoa perversa. A provocação que exerce sobre a vítima leva-a a ultrapassar os seus limites. O perverso só consegue existir e ter uma boa auto-estima humilhando os outros” (BARROS, 2006: 892).

[35] O assédio moral empresarial difere do assédio moral decorrente da chamada “administração de pessoal por injúria” consistente nas práticas de superiores hierárquicos com abuso do poder diretivo. Lá o assédio decorre dos métodos de gestão; aqui, decorre de atos de gestão fundados em práticas de assédio perverso decorrentes da arrogância do empregador ou de seus prepostos. Neste tipo de assédio perverso, o foco recai sobre a conduta do assediador, enquanto no assédio moral empresarial a ênfase se dá nas técnicas de gestão que, visando maximizar lucros e resultados, implicam danos psíquicos nos subordinados.

[36] Na França, a vitimologia passou a ser uma especialidade na área médica e consiste em analisar as razões que levam um indivíduo a tornar-se vítima, os processos de vitimação, as consequências a que induzem e os direitos que podem pretender (PAMPLONA FILHO, 2003).

[37] CÓDIGO PENAL: Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

[38] CÓDIGO PENAL: Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.

[39] “Qualquer que seja a definição adotada, o assédio é uma violência sub-reptícia, não assinalável, mas que, no entanto, é muito destrutiva. Cada ataque tomado de forma isolada não é verdadeiramente grave; o efeito cumulativo dos microtraumatismos frequentes e repetidos é que constitui a agressão” (HIRIGOYEN, 2002: 17).

[40] “Em muitas empresas reina um clima de indiferença ou suspeitas recíprocas, quando não, de medo. […] mesmo quando as direções se esforçam para criar uma atmosfera colaborativa, quase sempre o convívio tem um ar artificial, forçado; festas de trabalho e reuniões são sempre um pouco patéticas. As panelinhas, as alianças, o bando de puxa-sacos são sempre grupos minados pela desconfiança, transitoriedade e carreirismo. Muitos colaboradores passam a vida toda como unha e carne com os chefes e colegas de trabalho, sem abdicar do tratamento formal só por uma questão de compostura exigida pela hierarquia e pelo clima de impessoalidade impostos pela empresa. Não são raros os casos quando alguém se torna alvo de perseguições, bodes expiatórios, objeto de mobbing” (DE MASI, 2000: 210).

[41] “A violência psíquica no trabalho pode ser descrita como um conjunto de comportamentos que ofende e humilha, uma vez que é constituída de atos ou processos agressivos, os quais transgridem as regras que garantem a harmonia e o convívio social no contexto de trabalho, em determinada cultura. Origina-se em uma relação social de imposição, com uso de poder, em forma de ameaça, ou côo fato concreto, na prática de ações abusivas ou omissões no âmbito das relações de trabalho. […] A violência psicológica no trabalho se caracteriza por meio de instrumentos coercitivos (explícitos e sutis) ou por fatos e situações de uso intenso e desproporcional de força, permeadas de exageros, abusos, maus-tratos, isolamento, perseguição, humilhação, intimidação, manipulação, ameaças, constrangimentos e pressões exageradas” (SOBOLL, 2008: 141-142).

[42] Quanto ao último elemento (dano psíquico), nós o consideramos dispensável, data vênia de inúmeras posições contrarias. O conceito de assédio moral deverá ser definido pelo comportamento do assediador, e não pelo resultado danoso. Ademais, a Constituição vigente protege não apenas a integridade psíquica, mas também a moral. Ao se exigir o elemento alusivo ao dano psíquico como indispensável ao conceito de assédio moral, teríamos um mesmo comportamento caracterizando ou não a figura ilícita, conforme o grau de resistência da vitima, ficando sem punição as agressões que não tenham conseguido dobrar psicologicamente a pessoa. E mais, a se admitir como elemento do assedio moral o dano psíquico, o terror psicológico se converteria em um ilícito sujeito à mente e a subjetividade do ofendido (BARROS, 2006: 890).

[43] Segundo esta linha de entendimento, para que se configurasse o nexo causal entre os transtornos da saúde do trabalhador e os métodos de gestão empresarial, além do exame clínico (físico e mental) e os exames complementares, quando necessários, o médico que atuasse como perito judicial deveria considerar aspectos como “a história clínica e ocupacional, decisiva em qualquer diagnóstico e/ou investigação de nexo causal; o estudo do local do trabalho; o estudo da organização do trabalho; os dados epidemiológicos; a literatura atualizada; a ocorrência de quadro clínico ou subclínico em trabalhador exposto a condições agressivas; a identificação de riscos físicos, químicos, biológicos, mecânicos, estressantes e outros; o depoimento e a experiência dos trabalhadores; os conhecimentos e as práticas de outras disciplinas e de seus profissionais, sejam ou não da área da saúde” (DARCANCHY, 2006: 24).

[44] “O terror psicológico provoca na vítima danos emocionais e doenças psicossomáticas, como alterações do sono, distúrbios alimentares, diminuição da libido aumento da pressão arterial, desânimo, insegurança, entre outros, podendo acarretar quadros de pânico e de depressão. Em casos extremos, tais quadros mórbidos podem levar à morte ou ao suicídio” (CAIXETA, 2002: 65).

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