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Alta rotatividade no emprego em call-centers: o que isso significa?

por Valdete Souto Severo

A alegação de que há alta rotatividade no emprego por conta dos empregados que não suportam permanecer mais de seis ou sete meses no emprego deve ser examinada com atenção. Tem sido frequente, sobretudo em demandas trabalhistas que discutem relações de trabalho em empresas de call-centers, a alegação dos empregadores de que não conseguem manter a força de trabalho por muito tempo na empresa. E isso é fato.

 

por Valdete Souto Severo

 

A alegação de que há alta rotatividade no emprego por conta dos empregados que não suportam permanecer mais de seis ou sete meses no emprego deve ser examinada com atenção. Tem sido frequente, sobretudo em demandas trabalhistas que discutem relações de trabalho em empresas de call-centers, a alegação dos empregadores de que não conseguem manter a força de trabalho por muito tempo na empresa. E isso é fato.

São recorrentes os pedidos de rescisão indireta de trabalhadores que estão há poucos meses na empresa, nesse tipo de atividade. A alta rotatividade é ruim para todos.

É ruim para a empresa, que não consegue qualificar seus empregados e tem a necessidade constante de buscar novos trabalhadores no “mercado”.

É péssima para o trabalhador, que terá de “ir ao mercado” buscar novo posto de trabalho. É igualmente ruim para a sociedade, na medida em que o serviço é realizado por profissionais inexperientes, que estão constantemente “em treinamento”. Então, para além da forma como lidaremos com a questão, nas respectivas ações trabalhistas, precisamos refletir sobre as razões desse fato.

No direito do trabalho vigora a noção da continuidade, em realidade uma decorrência direta do princípio de proteção. Todos concordam com essa premissa fundamental: o empregado, numa realidade capitalista em que é preciso trabalhar para sobreviver, não tem (como regra) interesse na perda do posto de trabalho que, para ele, tem consequências que extrapolam a esfera patrimonial. A perda do trabalho é a perda do ambiente de convívio, do lugar em que passamos a maior parte do nosso dia. É o retorno à busca pela sobrevivência, à competição em um “mercado” que não costuma ser amistoso. Quando a regra geral da continuidade é invertida e os trabalhadores começam a sistematicamente “pedir” demissão ou ingressar com demandas discutindo rescisão indireta, algo está fora do lugar.

A reflexão que se impõe gira em torno das razões pelas quais esses empregados preferem o desemprego a manter-se trabalhando para o atual empregador. Para compreendê-las, comecemos por analisar a realidade do trabalho em call-centers. A maioria dos trabalhadores dessas empresas são jovens que recém ingressaram no “mercado de trabalho”. A remuneração é pouco mais de um salário mínimo e, com os descontos, muitas vezes nem alcança os oitocentos reais. O trabalho é determinado pela cobrança de metas. Essas metas, via de regra, alteram-se constantemente, por determinação do empregador ou, na maioria das vezes, das grandes empresas tomadoras dos serviços. Os critérios de fixação e pagamento não são claros, os empregados não dispõem das informações que lhes permitem saber quanto ganharão ao final do mês. A remuneração, como regra, é paga também sob a forma de comissões, cujo cálculo constitui um mistério. Na realidade, exigir do empregador que mantenha e exiba a documentação necessária para a verificação da correção do pagamento das comissões não é mais do que exigir que tenha perante seus empregados os mesmos cuidados que tem em relação aos seus clientes. Isso, entretanto, não se verifica.

O ambiente de trabalho, dividido em “pontos de atendimento”, é ruidoso e ao mesmo tempo fragmentado. Cada um em seu computador, com seu head-set, ouvindo e tentando convencer pessoas, que muitas vezes sequer pretendem participar daquele diálogo. As jornadas, que deveriam se limitar a seis horas, não raras vezes são bem mais extensas. Em pelo menos duas ações trabalhistas já ouvi testemunhas, convidadas a depor pela própria empresa, que informaram sobre a adoção de um sistema de “convite”. O operador que realiza jornada a tarde, por exemplo, é “convidado” a vir também pela manhã. E via de regra aceita, porque com isso poderá melhorar sua baixa remuneração.

Algumas vezes o faz sem sequer a perspectiva do ganho, pois em um dos casos que recentemente instrui, a testemunha – supervisor – chegou a mencionar que esse trabalho em turno inverso não é remunerado, porque os trabalhadores, afinal de contas, são convidados e não obrigados a trabalhar. Existem ainda outras situações patológicas, em que o assédio institucional é a regra e supervisores, também eles subremunerados, exercem a função de algoz de seus próprios colegas.

Essa é a realidade em que o trabalho torna-se insuportável. Se pensarmos no que diz nossa Constituição e toda a doutrina de direitos fundamentais, quando postulam para o trabalho a função de constituição do sujeito, forma de ser-no-mundo, é difícil evitar a conclusão: a atividade de operador em call-centers tem se revestido de um caráter objetivamente desestruturante, porque nega ao trabalhador a possibilidade de realizar-se pelo trabalho, impõe-lhe um sofrimento desnecessário e uma insegurança que torna, com o tempo, inviável a manutenção do vínculo. Aparentemente não existem culpados.

É o tipo de atividade e a realidade da concorrência que tornam o trabalho nesses ambientes objetivamente penoso e mesmo insuportável.

Na realidade, porém, essas condições negativas não são naturais.

Esses trabalhadores poderiam (e podem) ser bem remunerados, deveriam ter sua remuneração especificada de modo claro, não poderiam estar sujeitos a metas variáveis, inatingíveis e cujos critérios lhe são inacessíveis. O ambiente não pode ser assediador, as horas extras não podem ser habituais. Tudo isso está determinado no ordenamento jurídico vigente. O que ocorre, então, é uma opção administrativa ditada pela lógica da terceirização, na qual a necessidade de atender às exigências da tomadora, inclusive quanto aos valores do contrato, faz com que a precarização das condições de trabalho atinja seu nível máximo. Então, há sim como determinar, com certa facilidade, os responsáveis por essa inversão da lógica da continuidade.

O desrespeito a uma série de direitos básicos, tal como aquele que determina pagamento de remuneração capaz de garantir sobrevivência digna ao trabalhador ou mesmo a regra de sinalagma, pela qual o trabalhador deve saber previamente como será remunerado e a quanto corresponderá seu empenho no cumprimento das metas, estão insertos no conceito amplo de “descumprimento das obrigações do contrato”. Portanto, mesmo sob a lógica exclusivamente positiva do direito contido na CLT, há meio de reverter essa prática predatória de exercício da atividade empresarial à custa da sanidade física e mental dos empregados e, com isso, certamente, alterar esse costume negativo, que tem se instaurado em algumas empresas. Costume, aliás, respaldado pela política de conciliação amplamente adotada pela Justiça do Trabalho.

O empregado que não suporta mais as condições de trabalho assina um documento confeccionado previamente pela empresa “pedindo” demissão ou ajuíza ação requerendo rescisão indireta e, como regra, vários outros pedidos.

O acordo, que muitas vezes sequer contempla o valor integral das verbas resilitórias, “quita” – no mínimo – todos os direitos discutidos na demanda.

Nesses casos, o Poder Judiciário não consegue ver o assédio, o prolongamento da jornada, a ausência de critério no pagamento das comissões. Esses jovens que estão ingressando no “mercado de trabalho”, são desde cedo “ensinados” a se sujeitar à negação sistemática de seus próprios direitos. Tudo “se resolve” por pouco mais de mil reais, em prejuízo real não apenas aos direitos fundamentais trabalhistas, mas também à função que o Poder Judiciário exerce na concretização da Constituição de 1988 e à própria sociedade, que perde em qualidade de vida e convivência.

 

por Valdete Souto Severo

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