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O Uso Predatório da Justiça, por Gustavo Fontoura Vieira, juiz do TRT-RS

O Uso Predatório da Justiça é o título do artigo produzido pelo juiz do Trabalho da 4ª Região Gustavo Fontoura Vieira. No texto, o magistrado, entre outros aspectos, destaca que “A eficiência do Poder Judiciário não decorrerá da busca frenética por resultados numéricos de uma Justiça que não vê e não questiona o uso predatório de sua estrutura”. 

 

O Uso Predatório da Justiça, por Gustavo Fontoura Vieira, juiz do TRT-RS

95 milhões de processos tramitam no Poder Judiciário em todo o país. Embora vivamos numa sociedade marcada pela competição, pelo litígio, esse dado estatístico, aberto e estudado, revela informações muito preocupantes.

Impacta constatar que o Judiciário está instrumentalizado por habituais sonegadores de direitos: grandes empresas, grandes grupos econômicos nacionais e estrangeiros e por órgãos e empresas públicos. Está cooptado para processar milhões de demandas que atendem, por discutíveis motivos e pela demora na tramitação, aos interesses desses entes públicos e privados. Segundo dados estatísticos recentes divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça os maiores litigantes são operadoras de telefonia, bancos públicos e privados, a União, a Previdência Social, dentre outros (www.cnj.jus.br). Na Justiça do Trabalho não é diferente: são instituições bancárias e financeiras, empresas de petróleo e telefonia, frigoríficos, municípios e empresas estatais (www.csjt.jus.br). Destacam-se, também, empresas de serviços terceirizados, comprovando as consequências nefastas da terceirização.

Os cidadãos e as empresas têm assegurada na Constituição Federal a reparação dos direitos lesados e podem buscar essa reparação em ação judicial. O problema surge quando se identifica que os habituais litigantes criaram estratégia ilícita para transformar Tribunais em departamentos de atendimento a clientes, Varas do Trabalho em setores de recursos humanos. Assim, eliminam ou reduzem custos com estrutura extrajudicial de solução de conflitos.  Por sua vez, o Estado sonegador de direitos descumpre obrigações legais, protela soluções de nível administrativo e entulha o Judiciário.

Essa grave distorção prejudica o funcionamento do Poder Judiciário: torna a prestação de justiça mais demorada, dificulta e desestimula o acesso à justiça pelo cidadão comum. 

Para os grandes sonegadores de direitos descumprir a lei tornou-se regra de conduta e vantagem competitiva. “Vá procurar seus direitos!” é expressão emblemática que traduz o desprezo pela ordem jurídica no Brasil. Convém ao Poder Judiciário, então, denunciar à sociedade os grandes litigantes, porque são os maiores responsáveis pela morosidade, porque fazem uso predatório do sistema de justiça.

A solução do problema é complexa. Recomenda mudança cultural: de respeito aos direitos e observância dos deveres, de cumprimento das decisões judiciais, de resolução extrajudicial de conflitos. Mas, de imediato, há um acervo de medidas importantes a adotar. A primeira, os Tribunais precisam criar auditoria permanente de processos e demandas. O Processo Judicial eletrônico (PJe) permite levantamento e estudo de dados para identificar e punir tentativa de aparelhamento da Justiça. Além disso, o processo judicial precisa deixar de ser um bom negócio para o devedor. Ampliar juros de mora incidentes na ação judicial é necessário. Sanções processuais por atentado à jurisdição, por litigância de má-fé, por danos morais coletivos, precisam ser mais aplicadas (arts. 14 e 17, CPC). Também necessária a divulgação pública de listas mais detalhadas sobre os maiores litigantes e dos grandes devedores, providências exigíveis do Conselho Nacional de Justiça, Tribunais e Varas, com a participação do Ministério Público e dos demais órgãos relacionados ao sistema de justiça

Os Poderes Públicos devem intervir com vigor, atuando conjuntamente. As agências reguladoras precisam ser mais ativas: exercer com maior eficiência e independência suas atribuições legais, fiscalizar, punir com elevadas e exemplares multas administrativas, corrigir práticas ilícitas em respeito aos direitos da cidadania.

Esse cenário atual de apropriação do Poder Judiciário pelos contumazes demandantes, com quase cem milhões de processos em tramitação, precisa mudar urgentemente. A eficiência do Poder Judiciário não decorrerá da busca frenética por resultados numéricos de uma Justiça que não vê e não questiona o uso predatório de sua estrutura.  Não podemos programar o Judiciário como máquina para produção em série de decisões “fast food”, insensíveis, telegráficas, reprodutoras de súmulas. A sociedade não quer a sentença judicial como um simulacro de justiça, mera estatística.

A justiça é valor supremo. Acesso à justiça e resolução das demandas em tempo célere e razoável são direitos humanos, fundamentais (art. 5º, CRFB). Para concretizá-los na vida de cada cidadão o Judiciário não poderá continuar prisioneiro das estratégias de negócios dos grandes litigantes e dos contumazes devedores em nosso país.

Juiz do Trabalho Gustavo Fontoura Vieira, titular da 1ª Vara do Trabalho de Santa Maria

A versão reduzida do texto acima foi publicada no jornal O Sul de 06/07/2015, página 6 do Caderno Colunistas.

Fonte: TRT-RS

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