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Magistratura trabalhista gaúcha preocupada com casos de escravidão contemporânea no Estado

A recente divulgação de que 17 trabalhadores estariam submetidos a casos análogos à escravidão na cidade de Lajeado, no interior do Rio Grande do Sul, chocou os gaúchos. Mais ainda por existir uma ideia preconcebida de que esta prática é incomum no Estado. Contudo, mesmo realizada em menor escala do que em outras regiões, ela, infelizmente, ainda persiste.

Trabalhadores paraibanos foram libertados de condição análoga à escravidão em Lajeado 
Foto: Rodrigo Nascimento/ O Informativo do Vale 

 “É mais frequente a ocorrência de trabalho escravo em momentos de crise”

 

A recente divulgação de que 17 trabalhadores estariam submetidos a casos análogos à escravidão na cidade de Lajeado, no interior do Rio Grande do Sul, chocou os gaúchos. Mais ainda por existir uma ideia preconcebida de que esta prática é incomum no Estado. Contudo, mesmo realizada em menor escala do que em outras regiões, ela, infelizmente, ainda persiste.

Trabalhadores paraibanos foram libertados de condição análoga à escravidão em Lajeado 
Foto: Rodrigo Nascimento/ O Informativo do Vale 

 “É mais frequente a ocorrência de trabalho escravo em momentos de crise”


Leia a seguir, a análise do desembargador Fabiano Beserra, do Tribunal do Trabalho da 4ª Região, a respeito do tema.

– Na visão da sociedade, a utilização do trabalho escravo é prática incomum no Rio Grande do Sul e teria maior incidência em estados do Nordeste e Sudeste. Este conceito é correto?

Esta visão não está correta. Basta ver que no cadastro de empregadores que submetem trabalhadores à condição análoga à de escravo (“lista suja”) figuram empregadores de todas as regiões do país. Além do mais, o Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério do Trabalho (MT) já constaram vários e graves casos no RS, SC e PR. Deve-se, ainda, levar em conta que os Estados das regiões Sul e Sudeste são os principais destinos dos imigrantes internacionais (haitianos, senegaleses, ganeses etc.), potencialmente vulneráveis à exploração, pois não contam com o apoio da comunidade, não dominam o idioma e nem a cultura local. Além disso, é preciso ter em mente que nos últimos anos o trabalho escravo urbano, em alguns setores, como indústrias têxteis (confecções), frigoríficos e construção civil, tem sido mais recorrente, afastando aquela ideia de que o trabalho escravo ocorre apenas em fazendas de criação de gado do Norte e Centro-Oeste do país.No setor de confecções, por exemplo, grandes marcas têm se valido da precarização da cadeia produtiva (terceirizações sucessivas), permitindo que pequenas unidades (“ateliers”) explorem o segmento mais vulnerável da sociedade.

– O senhor acredita que, com o crescente nível de desemprego no País, há possibilidade deste tipo de exploração surgir com maior frequência? Como é possível prevenir o aliciamento de trabalhadores?

Sim, é mais frequente a ocorrência de trabalho escravo em momentos de crise. A crise gera desemprego, então os trabalhadores sofrem com a informalidade e a precarização. Os trabalhadores suscetíveis à exploração, como é o caso dos migrantes estrangeiros e internos, são os primeiros a serem vitimados quando os países e estados de destino se encontram em momentos de crise, sobretudo no tocante ao mercado de trabalho e aos direitos sociais, além disso, sofrem restrições à legalização de documentos.

O aliciamento deve ser combatido e prevenido com a intensificação das fiscalizações e com o esclarecimento da população, especialmente nos locais de origem dos trabalhadores explorados.

– Há argumentos de setores da sociedade de que a legislação que regra o setor não é clara sobre a questão do trabalho análogo ao escravo e que a prática seguiria apenas a “cultura da região”. Qual sua análise sobre esta afirmação e como seria possível mudá-la?

Esse argumento é totalmente descabido. Tem como objetivo, na realidade, deixar impunes os infratores, pois 90% dos resgates de trabalhadores escravizados são motivados pela inobservância das regras de saúde e segurança no trabalho. O que pretendem os adeptos desta alteração do Código Penal é erradicar o combate ao trabalho escravo e não, como era de se esperar, erradicar a própria chaga social.

A nossa legislação é muito boa no tocante ao tema, tanto é que o Brasil é reconhecido como modelo pela comunidade internacional (OIT) no combate ao trabalho escravo. O art. 149 do Código Penal traz uma definição de trabalho escravo que contempla as seguintes espécies: trabalho forçado, jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho e endividamento (sistema de truck system). Além disso, o § 1º, do mesmo dispositivo cita as hipóteses de trabalho escravo por equiparação. A Constituição da República e as normas internacionais dão sustentação ao art. 149 do CP, pois as condutas proibidas levam em consideração a dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho e a finalidade social da propriedade, dentre outros princípios constitucionais.

Vale recordar que são mais de 20 anos de êxito no combate ao trabalho escravo no Brasil, embora seja necessário avançar na prevenção e na reinserção dos trabalhadores resgatados.

– Qualquer pessoa pode denunciar este tipo de crime? Como proceder nestes casos?

Sim, qualquer pessoa pode denunciar no Ministério Público do Trabalho e Ministério do Trabalho, valendo destacar que no RS está implementada a Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo (COETRAE/RS), formada por vários órgãos públicos e entidades da sociedade civil.

Desembargador Fabiano Beserra  Foto: TRT-RS

O caso

Em 24/8, após receber denúncia, a Polícia Rodoviária Federal, em operação conjunta realizada com a Brigada Militar, Polícia Civil e Ministério do Trabalho encontrou, em Lajeado, 17 trabalhadores oriundos da Paraíba em situação análoga à de escravos. As vítimas estavam dentro de um caminhão e trabalhavam como ambulantes, vendendo redes, cintos e capas para automóveis. Elas recebiam como contraprestação pelo serviço apenas água e comida e, quando não obtinham êxito nas vendas, eram espancados e presos em uma cela improvisada dentro do mesmo caminhão em que dormiam. 

Após ação dos órgãos citados e da Justiça do Trabalho, em 26/8, os trabalhadores receberam suas verbas indenizatórias que foram pagas pelos empregadores na sede do MPT em Santa Cruz do Sul. 


Desdobramentos 

– Em 26/8, o Ministério Público do Trabalho da 4ª Região (MPT-RS) fechou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com os dois homens que eram responsáveis pelo aliciamento dos trabalhadores (os “contratantes” são irmãos, de 42 e 44 anos, também paraibanos e que possuem passagem na polícia por outros delitos). 

– Por meio do TAC foi estabelecido que as possíveis contratações futuras desses ditos empresários observem todas as condições necessárias para o desenvolvimento do trabalho de forma digna e de acordo com o preconizado pelo direito do Trabalho. 

– Conforme ressalta a procuradora do Trabalho responsável pelo processo, Enéria Thomazini, os desdobramentos deste caso serão acompanhados de perto. “Neste sentido, já fizemos contato com o Ministério Público do Trabalho da Paraíba solicitando que o órgão dê continuidade à fiscalização do cumprimento dos critérios estabelecidos no TAC e possam ainda prevenir reincidências”, esclarece a procuradora.

– Segundo ela, do total de trabalhadores libertados, 15 voltaram à Paraíba e dois ficaram em São Paulo.

– Os dois contratantes, presos em flagrante, estão cumprindo prisão preventiva em Lajeado. 

Na Justiça do Trabalho: em 25/8, atendendo à solicitação do MPT, o juiz do Trabalho Substituto Eliseu Cardozo Barcellos determinou o arresto do caminhão aprendido pela Polícia Civil de Lajeado, dentro do qual foram encontrados os trabalhadores. De acordo com o magistrado, o caminhão deveria ser removido ao depósito do leiloeiro que atua na Unidade Judiciária. “Realizado o arresto cautelar e a remoção do bem, deverão ser inseridas as restrições circulação e venda do veículo, via sistema RENAJUD”, determina o juiz na liminar. 

(…) fica evidenciado na medida em que os requeridos periculum in mora encontram-se presos provisoriamente, podendo ser libertos a qualquer momento por decisão judicial, sendo, até este momento, desconhecidos outros bens, além do caminhão apreendido, passíveis de satisfazer os futuros créditos dos trabalhadores. Necessário, assim, evitar o perigo de dano irreparável e assegurar o resultado útil do processo, refere o magistrado.

Sobre esta atuação, a procuradora Enéria Thomazini destaca que a ação da Justiça do Trabalho, de pronta apreensão do veículo, contribuiu para o êxito do processo. 


Importante: tramita no Senado um projeto de lei (PLS 432/2013) que restringe o conceito de trabalho escravo e reduz a punição para quem adota essa prática.

O PLS 432 reduz o crime de trabalho escravo somente aos casos de trabalho forçado e servidão por dívida. No entanto, o artigo 149 do Código Penal estabelece ainda outras duas situações em que fica caracterizado o crime: casos de trabalho em condições degradantes e sob jornada exaustiva.

O presidente da AMATRA IV, juiz Rodrigo Trindade, considera que o projeto de lei apresenta retrocessos. Cita como exemplo a ser corrigido a exclusão de condições de trabalho degradantes e jornada exaustiva do conceito de escravidão contemporânea. O magistrado também compreende importante ampliar as origens de decisões judiciais que determinam a expropriação da propriedade em que foi encontrado trabalho escravo. Em sua análise, “para garantia de plena efetividade da lei, também sentenças trabalhistas, e não apenas penais, devem servir para decretar a expropriação de terras em que detectada escravidão”.

Presidente da AMATRA IV, juiz Rodrigo Trindade Foto: Divulgação

Dados sobre o trabalho escravo

*De 1995 a 2015, cerca de 50 mil pessoas foram libertadas do trabalho análogo ao de escravo no Brasil.

*Em 2015, foram libertados pelo menos 1.111 trabalhadores de condições análogas à escravidão, de acordo com o Ministério do Trabalho. 

*A região Sudeste foi a que teve o maior número de trabalhadores libertados, totalizando 668 pessoas (cerca de 60% do total em 2015), sendo Minas Gerais o estado que resgatou mais pessoas dessas condições (45%), seguido de Maranhão (10%) e Rio de Janeiro (9%). Historicamente, a região Norte é a que registra mais casos.

*A agricultura (21%) foi o setor com o maior número de trabalhadores libertados, seguido da construção civil (15%) e a pecuária bovina (14%).

De acordo com a legislação brasileira, quatro elementos podem caracterizar o trabalho escravo:

– Condições degradantes de trabalho: quando a violação de direitos fundamentais fere a dignidade do trabalhador e coloca em risco sua saúde e sua vida. Costuma ser um conjunto de elementos irregulares, como alojamentos precários, péssima alimentação, falta de assistência médica, saneamento básico e água potável.

– Jornada exaustiva: quando o trabalhador é submetido a esforço excessivo, sobrecarga ou jornadas extremamente longas e intensas que acarretam danos à sua saúde, segurança ou mesmo risco de morte.

– Trabalho forçado: quando a pessoa é mantida no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas, tendo sua liberdade violada. 

– Servidão por dívida: quando o trabalhador fica preso ao serviço por causa de um débito ilegal (em geral, referente a gastos com transporte, alimentação, aluguel e equipamentos de trabalho, cobrados de forma abusiva e descontados diretamente de seu salário).

Fontes: Repórter Brasil e Ministério Público do Trabalho

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