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Vaticano – Daniela Floss

Daniela Floss

(Saudações).

Há muito o que lhes dizer sobre as violações de direitos sociais nesses tempos obscuros e de pós-democracia que vivemos no Brasil.

Como Juíza do Trabalho não posso deixar de denunciar o recente esfacelamento do direito social do trabalho promovido pela reforma de 2017, que claramente afronta a proteção aos diretos fundamentais inscritos na Constituição Brasileira de 1988 e em diversas normas de direito internacional.

Tal lei, num país já muito desigual, promove graves retrocessos em termos de proteção à saúde do trabalhador, de limites da jornada, de acesso à Justiça, de manutenção das organizações sindicais, entre tantas outros.

Sabemos que a desregulamentação da legislação social do trabalho faz parte das propostas neoliberais desde o Consenso de Washington. Essas medidas foram sendo adotadas ao logo do tempo, porém encontraram seu auge no governo formado após o afastamento da Presidenta democraticamente eleita do poder, quando em um curtíssimo espaço de tempo, se aprova uma legislação devastadora em termos de retirada de direitos sociais do trabalho.

Acredito que esses acontecimentos no Brasil somente se concretizaram porque vivemos tempos autoritários e sob a lógica neoliberal, que, afinal, mais do que uma ideologia ou uma política econômica, é, conforme Pierre Dardot e Christian Lavall[1], “uma nova racionalidade, que estende a lógica do capital a todos os âmbitos da vida das pessoas.” Conforme os citados autores, “com o neoliberalismo o que está em jogo é nada mais nada menos do que a forma de nossa existência, isto é, a forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos.”

Essa forma de existirmos tem como pilares o individualismo, a desigualdade, a competição e a eficiência, ideais que são propagados em todas as esferas, de modo a moldar a subjetividade do ser humano, que se torna um ser fragmentado e individualizado, vivendo o paradoxo neoliberal de se tornar um “escravo de si mesmo”[2], um ser exausto em busca de mais produtividade.

Essa nova realidade, para Richard Sennett[3], abala o caráter e corrói tudo o que existe de estável na personalidade, como os laços com os outros, os valores e as referências.

Neste contexto, os trabalhadores perdem força para frear esses retrocessos sociais. Aliás, os trabalhadores já nem se reconhecem como classe, mas vivem na ilusão de liberdade de se tornarem empreendedores, empresários de si mesmos. Liberdade paradoxal que faz com que, por exemplo, trabalhe-se até 14 horas por dia para uma plataforma digital. Mas é o mito no qual os fizeram acreditar.

O Juiz também foi formado nessa racionalidade, que é totalizante e atinge a lógica individual e das instituições. Neste cenário, apesar de a nova lei ofender a constituição, parte do judiciário a aplica sem nenhuma crítica, talvez porque a maior preocupação imposta pelo sistema hoje seja a de apresentar uma boa estatística, ou porque os Juízes vivam tão distanciados da realidade social que não conseguem compreender o que se passa na vida de um trabalhador.

Então enfrentamos o paradoxo de, por um lado, ver a erosão dos direitos sociais, resultado de anos de lutas por dignidade e, por outro, um Poder Judiciário também capturado pelos ideais neoliberais, que parece convencido de que os direitos humanos passaram a ser privilégios e caprichos excessivamente dispendiosos para a economia. A implantação de técnicas de eficiência empresariais aos Juízes – com imposição cada vez maior de metas de números de julgamentos e conciliações – propicia um ambiente de preocupação com números em detrimento da preocupação com a efetividade dos direitos humanos.

O Juiz, nesse contexto, ao invés de ser um garantidor dos direitos sociais, acaba se tornando um instrumento do poder econômico para se defender dos pobres e impedir a concretização desses direitos. O Juiz é transformado em um mero policial do neoliberalismo.

Exemplo maior dessa conjuntura na Justiça do Trabalho é o obstáculo ao acesso à Justiça pela possibilidade de cobrança de custas judiciais e honorários aos trabalhadores, mesmo quando beneficiários da Justiça Gratuita, apesar de a Constituição, e mesmo o Direito Civil, garantirem a gratuidade.  Tanto é assim que houve uma redução de algo em torno de 40% nos ajuizamentos de ações trabalhistas.

Essa redução traduz nada mais do que o silêncio provocado pelo medo. O medo de se perder o pouco que tem. O medo que é instrumento tão eficaz da política neoliberal, o mesmo medo que leva cidadãos a escolherem governos autoritários que apostam na exclusão e extermínio de jovens negros de periferia. O medo tanto cala a voz do trabalhador pobre como cala a voz dos defensores de direitos humanos. E se não cala mata. Lembro aqui Marielle, importante defensora dos direitos humanos, vereadora no Rio de Janeiro, covardemente assassinada. E em nome dela a lembrança de tantos outros ameaçados, presos injustamente, perseguidos e mortos.

Diante dessa realidade cruel, porém, acredito que não caiba a nossa resignação, mas sim nossa luta por emancipação social e humanização. Nas palavras de Paulo Freire[4]: “Na verdade, se admitíssemos que desumanização é a vocação histórica dos homens, nada mais teríamos a fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, não teria significação. Esta somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta (…).”  

Longe do cinismo da neutralidade que não vê, ou não quer ver alternativas, acredito que estamos aqui unindo forças para lutar por outra racionalidade. Uma racionalidade calcada nos valores da democracia – que não existe sem a igualdade promovida pela concretização dos direitos sociais -, da cultura, da ética e da solidariedade.

No âmbito do Judiciário, entendo que é crucial o investimento numa seleção e capacitação de Juízes que leve em conta os campos sociológico, cultural e econômico, habilitando o Juiz para uma visão crítica da realidade. São competências necessárias ao Juiz que conheça o trabalhador, conheça os movimentos sociais, a luta das mulheres, dos negros, dos pobres, enfim, conheça a realidade da vida e se interesse por ela, ao invés de se colocar como um ser afastado da sociedade, vivendo entre os muros do seu condomínio, negando-se a ver o diferente.

Diante disso, proponho, como ação a ser pautada pela “Junta Permanente Panamericana de Juízes em Defensa dos Direitos Sociais” a ser consolidada, o investimento em ações que tenham por objetivo a formação de Juízes com consciência do seu papel político em termos de garantia dos direitos sociais, ao invés de privilegiar a eficiência vazia dos números.

Afinal, acredito que é a defesa dos direitos sociais a razão maior da nossa existência como seres humanos enquanto no exercício do papel de Magistrados.  


[1] LAVAL, Christian e PIERRE Dardot. A Nova Razão do Mundo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016.

[2] HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Editora Vozes, 2016.

[3] SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. 15 ed. Rio de Janeiro: Record, 2010. 

[4] FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018, p.40/41.

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