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Cotidiano, triste cotidiano.

por Átila Da Rold Roesler*

João trabalha num frigorífico, desses que tem propaganda bonita na televisão, que patrocina um campeonato nacional de futebol, dez horas por dia, a semana inteira, cortando frango, trabalho repetitivo, temperatura menos de 10ºC, ritmo de produção controlado, autorização por escrito pra ir ao banheiro, esteira que não para, só meia hora para almoço e descanso. Trabalha de dia ou à noite, “turno de revezamento”, explicaram.

por Átila Da Rold Roesler*

João trabalha num frigorífico, desses que tem propaganda bonita na televisão, que patrocina um campeonato nacional de futebol, dez horas por dia, a semana inteira, cortando frango, trabalho repetitivo, temperatura menos de 10ºC, ritmo de produção controlado, autorização por escrito pra ir ao banheiro, esteira que não para, só meia hora para almoço e descanso. Trabalha de dia ou à noite, “turno de revezamento”, explicaram. “Tá na convenção, não ganha hora extra”, disseram. Com cinco filhos, João sai do trabalho, passa no bar, toma umas doses para aliviar a dor no ombro direito, “bêbado”, falaram! Patrão não paga mais de 700 líquidos, vai pra casa com alguns trocados, a mulher faz faxina na casa dos outros, as crianças não tem onde ficar. Outro dia, a filha adoeceu, febre alta, faltou à escola, levou no posto de saúde, perdeu a manhã inteira para falar com o doutor e pegar remédio. Levou justificativa na empresa, patrão não aceitou, falta injustificada, desconto e tome advertência. Outro dia, João não quis fazer hora extra, tinha que ir pra casa, mulher fazendo limpeza, os filhos não tinha com quem deixar. Insubordinação. “Vai tomá gancho de dois dias de suspensão”, não pode faltar, disse o patrão, a empresa não pode parar. Outro dia, João perguntou “e a insalubridade?”, eu me informei no Sindicato, patrão tem que pagar. Ouviu um “não” de volta, “tu recebe EPI”, indisciplina, “tá na rua”. Justa causa aplicada. Só resta voltar pra casa e contar pra criançada.

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Alex trabalha em uma loja de roupas, de grife, melhor vendedor, clientela fixa, comissão todo mês, quer aprender e seguir na empresa, gerente ou supervisor. Sai com os amigos, festa GLS, patrão descobre: “Alex é gay”, promoção, esquece. Faz treinamento, aprende tudo, começa a trabalhar de gerente, mas a promoção não vem, pois gay não é gente. Continua vendedor, o papel aceita tudo. Deprimido, Alex confessa: tenho AIDS. “Aí também já é demais”, fica o patrão indignado, adeus promoção, esquece o emprego, é justa causa por “guardar segredo”. 

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Outro Alex. 25 anos de idade. Trabalha na agroindústria. Beneficiamento de arroz. Trabalho pesado, jogar o arroz para beneficiar. Rosca sem fim, tranca. Parou tudo. Usa o aspirador, diz a norma de segurança. Mas é lento, rosna o supervisor. Não tem outro jeito: vai lá e usa a pá. Mas desliga, então. Nem pensar, que tempo é dinheiro, não podemos esperar. Entra lá, joga pra cima e faz funcionar. E fez. A rosca vira enquanto Alex ainda está lá. Rosca infinita, corpo sem vida. Triturado. Pedaços pra todo o lado. Outra família a lamentar. Na defesa: a culpa é do SAMU; fiscal do trabalho não tem noção. Nem dá pra comentar. Só lamentar. E assim como a família de Alex, chorar. 

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Lúcia abate suínos, todo dia, mais de mil, vai pra casa fedendo, pega dois ônibus, ninguém aguenta, duas horas pra chegar, marido esperando, crianças chorando. Jornada “in itinere”, ouviu falar, patrão não vai pagar, tá na convenção, transporte é favor, não obrigação, “tu é folgada”, dessa vez não vai dar. Aniversário de casamento, ganha um porco pra comemorar. Abate no intervalo do almoço, rapidinho, rapidinho, não pode atrasar. Deixa na caixa térmica, pra casa vai levar. Problema na saída, o porco o patrão não quer mais dar. “Ladra”, “porca”, patrão começa a lhe insultar, não pode pegar minha propriedade, a polícia vai chamar. Justa causa é pouco, pra cadeia que é o teu lugar. 

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Meu deputado já disse, “mulher ganha pouco porque engravida”, explica o patrão e então Janice é despedida, vai pra rua e eu tenho que me virar. Mesmo assim, resolve perguntar: “E a estabilidade?”. E o patrão, indignado, responde: “não tem nada disso, engravidou problema é teu, não meu”.  Procura teus direitos. Não precisa procurar, o meu direito não tá perdido, só preciso te mostrar. Seis meses sem emprego, sem trabalho, sem salário. Nem seguro conseguiu, só resta esperar. Ou pede uma coisa ou pede outra, diz o advogado do patrão. Inépcia. Não sei o que é isso. O juiz manda reintegrar, a empresa faz acordo, mas não vai pagar. Janice aceita, melhor ganhar pouco do que esperar, tenho uma criança pra alimentar. 

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Coloca o tijolo lá, não enrola que o patrão paga por hora. Pedro tem duas bocas pra alimentar, pede pela cinta de segurança, tu não sabe trabalhar. Um passo atrás, pro tijolo escorar, são cinco metros, tem que se virar. Coloca mais tijolo, que a obra tem que andar. Nem cinta, nem capacete, nem luva, treinamento nem precisa,  a prática é o que vale. Um passo à frente, plataforma balança, Pedro cai, são só cinco metros, morrer ele não vai. No hospital, fica sabendo: nunca mais vai andar. Nem trabalhar. Cadeira de rodas. E só 22 anos de idade. Duas filhas pra criar. Na defesa, o patrão diz: a culpa é exclusiva do empregado, que deveria saber como se deve trabalhar. Preguiçoso, não tenho culpa. No fim, nada mais importa: um pai, um trabalhador, um marido, saiu de casa pra trabalhar e nunca mais vai andar.

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Dedico esse texto aos personagens dessas histórias, trabalhadores que vivenciam o pior desse país, cujos nomes verdadeiros foram trocados. 

1-Todos os nomes utilizados nesse texto são fictícios, mas os fatos correspondem à realidade.

 

* ÁTILA DA ROLD ROESLER é juiz do trabalho na 4ª Região e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Pós graduado em Direito e Processo do Trabalho e em Direito Processual Civil. Foi juiz do trabalho na 23ª Região, procurador federal e delegado de polícia civil. Publicou os livros: Execução Civil – Aspectos Destacados (Curitiba: Juruá, 2007) e Crise Econômica, Flexibilização e O Valor Social Do Trabalho (São Paulo: LTr, 2015). Autor de artigos jurídicos em publicações especializadas. Professor na pós-graduação na UNIVATES em Lajeado/RS e na FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do Rio Grande do Sul. 

 

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