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Caderno 01

Firmino Alves Lima

AMATRA XV

(firminolima@amatra15.org.br)

Tese apresentada no CONAMAT 2006

A presente tese discute sobre a necessidade da inversão do ônus da prova nos processos trabalhistas que envolvem discussões sobre discriminação nas relações do trabalho, desde que exista algum indício de postura por parte do empregador ou contratante de serviços. A tese procura inicialmente evidenciar as dificuldades da vítima de ato discriminatório provar suas alegações em juízo, bem como a facilidade do empregador, ou contratante de serviços, para constituir prova em sentido contrário. O trabalho aponta as dificuldades verificadas no ordenamento processual trabalhista pátrio, bem como a facilidade verificada nos ordenamentos processuais supletivos. Por outro lado, a natural noção de que a igualdade transparece justiça pressupõe que o tratamento diferenciado seja devidamente justificado em juízo. E prossegue a tese elencando alguns diplomas legais e decisões alienígenas que reconhecem a dificuldade da prova, promovendo a inversão do ônus quando verificados indícios de tratamento discriminatório. Por fim, conclui ser possível a inversão, desde que exista nos autos pelo menos um indício da existência de tratamento discriminatório.

Não há dúvidas de que os ônus processuais são graves empecilhos para que uma parte, de algum modo debilitada ou desfavorecida, alcance uma provisão jurisdicional adequada a seus interesses. Um deles é o ônus da prova, principalmente nas situações que envolvam discriminação. É uma situação muito discutida entre vários diplomas legais que regulam a discriminação no trabalho, os quais aceitam e definem regras de inversão do ônus da prova nos casos onde se alega a existência de comportamento discriminatório por parte do empregador.

É amplamente reconhecida pela doutrina internacional a dificuldade de um empregado discriminado provar suas alegações em juízo, muito mais potencializada nos casos de discriminação por efeito adverso (também conhecida como indireta pela terminologia européia), situação nascida de ato neutro ou aparentemente despido de qualquer efeito discriminatório, mas que provoca impacto discriminatório sobre determinada pessoa ou grupo de pessoas envolvidas, até mesmo sem intenção. Trabalhadores contratados, candidatos e ex-trabalhadores discriminados têm muito maior dificuldade na produção da prova dos atos discriminatórios, seja pela falta de acesso aos dados e testemunhas que presenciaram uma decisão discriminatória, seja pela vantagem econômica de seu oponente que prejudica, senão inviabiliza, a produção da prova favorável às suas alegações.

No Brasil, não há qualquer previsão legal processual neste sentido. As regras de ônus da prova no processo trabalhista são definidas pelo artigo 818 consolidado#, que diz que incumbe à parte provar o que alega. Por seu turno, o artigo 333 do Código de Processo Civil estabelece que ao autor cabe a prova do fato constitutivo de seu direito e, ao réu, a prova da existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor#. O Código de Processo Civil tem aplicação subsidiária no processo do trabalho, a teor do artigo 769 consolidado mas, sobre o ônus da prova, há uma norma específica consolidada e que, não permitiria a aplicação da norma de ritos civis.

Várias decisões da Justiça do Trabalho tem exigido do empregado a prova de qualquer atitude discriminatória, algumas até de forma cabal e irrefutável, o que não pode ser aceito. O empregador ou contratante possui uma enorme vantagem na capacidade de produção de provas sobre atitudes discriminatórias, dispõe de total acesso à documentação relativa ao caso, tem acesso a dados fundamentais, dos quais pode muito bem dispor ou omitir em juízo sem a ciência da parte contrária, possui maior capacidade de arregimentar testemunhos (sem contar o notório poder coercitivo sobre eles pelo poder da dispensa), poder econômico para comprovar suas alegações com estatísticas, levantamento de históricos e um grande número de elementos probantes de grande importância. É importante lembrar, no caso das provas sobre discriminação, a disposição do parágrafo único do artigo 333 do Código de Processo Civil, que diz expressamente em seu item II que é nula a convenção que distribui de maneira diversa o ônus da prova quando tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito#.

José Carlos Barbosa Moreira lembra que o fator mais freqüente, talvez o mais grave de disparidade entre as partes, é o econômico, apesar de desníveis sociais e culturais também diferenciarem as partes, principalmente quando associados ao poder econômico#. O ilustre processualista afirma ainda que os litigantes habituais gozam sobre os litigantes eventuais todas as vantagens inerentes à produção de provas. Assim, a desigualdade material entre as partes introduz no aparato da Justiça uma deformação contra a qual o ordenamento deve reagir com energia. É dever do legislador, segundo o referido autor, criar mecanismos compensatórios destinados, quando necessário, a equilibrar as possibilidades concretas das partes e é dever do juiz fazer tais mecanismos atuarem, em cada caso, tão eficazmente quanto possa#.

Assim, as decisões que vêm a exigir a prova da discriminação por parte do empregado que alega discriminação em juízo estão desconsiderando tais fatores. Como bem disse Estevão Mallet, a atuação do juízo de forma rigorosamente igual entre as partes estaria trazendo a desigualdade das partes para dentro do litígio e essa situação raramente é idêntica#. E arremata o referido autor que a consagração da igualdade de tratamento tão-somente formal no processo somente agrava a desigualdade real existente entre as partes, discriminando aquela que se encontra em posição menos favorecida#.

Exigir da parte mais fraca a prova da discriminação, ainda mais de forma cabal e irrefutável, chega a ser cruel para a vítima de uma conduta discriminatória, principalmente quando for por efeito adverso (indireta). Importa em denegação do acesso à própria justiça por um aspecto formal da legislação instrumental e vem a ser um mecanismo de perpetuação das discriminações existentes neste país, caracterizado por tantas diferenças sociais. Em nada adianta nossa Constituição e nossas leis propugnarem pela igualdade substantiva e a melhoria da condição social dos menos favorecidos, se o acesso a uma provisão jurisdicional justa não é pleno, constituído sobre enormes empecilhos de ordem prática em um processo visivelmente distorcido, com graves resultados.

Amauri Mascaro Nascimento expõe com clareza que o direito processual do trabalho é elaborado totalmente com o propósito de evitar que o litigante mais poderoso possa desviar e entorpecer os fins da Justiça#. Em várias situações comuns no processo do trabalho, tem sido exigida do empregador a prova de fatos impeditivos, modificativos e extintivos do direito do autor.

A inversão do ônus da prova é um fator importante para a defesa dos direitos dos hipossuficientes em Juízo. Prova disso é o reconhecimento expresso dessa necessidade imposta na defesa dos interesses do consumidor, no artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor, o qual estabelece que é prerrogativa do consumidor “a facilitação de defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências”#. O reconhecimento da situação de inferioridade do consumidor perante o fabricante, fornecedor ou comerciante é óbvia, traduzindo-se em princípio protetivo. Assim, havendo verossimilhança das alegações da parte mais fraca, o juiz deverá acolhê-las ou mesmo adotar as regras ordinárias de experiência, aceitáveis no processo trabalhista na forma do artigo 335 do Código de Processo Civil, de aplicação subsidiária.

No caso de questões envolvendo a discriminação, resta saber qual a regra ordinária de experiência. Por estar mais próxima à noção de justiça, a igualdade pressupõe a sua aplicação, o que nem sempre é correto afirmar por haver igualdade formal sem igualdade material, mas a noção de igualdade material pressupõe ser uma noção mais próxima do sentido comum de justiça. Por dedução, as distinções tendem a apresentar mais atos de injustiça, demandando razões justificáveis para que subsistam, segundo a expressão de Berlin, “a igualdade não necessita de razões, mas sim a desigualdade”#.

Este entendimento decorre de um princípio geral de paridade de tratamento que gera uma obrigação ao autor da distinção, para que demonstre a justificação e razoabilidade da diversidade de tratamento empreendida, sob pena dela não ser aceita. Mais ainda, a proibição da discriminação, como atitude atentatória à dignidade da pessoa humana, exige uma valoração muito rigorosa e uma justificativa particularmente forte para uma disparidade de tratamento. Marzia Barbera assevera que, por ser o empregador o detentor do poder de estabelecer distinções, estas deverão estar condicionadas a justificações, exigindo do empregador a prova primária da existência de pressupostos de fato que permitam o exercício desse poder#.

Mais ainda, merece destaque o tratamento constitucional dado pela Carta Política de 1988 contra a discriminação, cujo combate é um dos objetivos do Estado brasileiro, não podendo ser outro senão um objetivo do próprio Poder Judiciário, como um dos três poderes do Estado que recebeu essa nobre missão do constituinte originário, em sede de princípio fundamental.

A jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos da América é decisiva em favor do deslocamento do ônus da prova. O caso mais emblemático envolvendo a questão da prova envolve uma alegação de discriminação por trato diferenciado, ou seja, para a terminologia européia seria uma discriminação direta. O caso McDonnell Douglas Corp. v. Green#, certamente, é reconhecido como o caso mais freqüentemente citado no estudo da discriminação no emprego e trata fundamentalmente deste tema#. Foi a primeira grande decisão da Suprema Corte que interpretou as disposições do Título VII do Civil Rights Act relativamente às práticas de contratação. A decisão reconheceu dois tipos de discriminação, aquela realizada mediante intenção, conceituando como tratamento diferenciado, e aquela realizada por práticas que parecem neutras na sua face, porém com conseqüências discriminatórias, conhecida como impacto adverso.

Também definiu a decisão da Suprema Corte que, em uma ação privada que não seja de classe, sob o manto do Título VII do Civil Rights Act, discutindo discriminação racial, o autor tem o ônus de demonstrar que houve um prima facie case que pode ser assim considerado quando: (1) o autor pertença a uma minoria racial; (2) ele tenha-se candidatado a um emprego que o empregador estivesse tentando preencher; (3) embora qualificado para o cargo tenha sido rejeitado; (4) depois o empregador continuou a procurar candidatos com qualificações do autor. Um prima facie case consiste em uma prova suficiente produzida pelo autor na sua inicial que permita o julgador decidir de forma razoável imediatamente em favor deste, se o réu não produzir prova suficiente que diga o contrário#.

A Suprema Corte estabeleceu uma importante regra sobre o ônus da prova, invertendo-a caso o empregado discriminado demonstrasse uma série de requisitos suficientes para vislumbrar, à primeira vista, uma atitude discriminatória (prima facie case). Uma vez caracterizada tal situação, ela remeteria ao empregador a demonstração dos motivos legalmente autorizados que o levaram a tomar aquela decisão. Daí estabeleceu que, havendo a demonstração clara de discriminação nos moldes ali estabelecidos como um prima facie case, caberá ao empregador o ônus de articular e provar que houve uma razão legítima e não discriminatória para que houvesse a rejeição na contratação. E ainda caberá ao autor demonstrar que as razões utilizadas pela empresa em sua defesa seriam meros pretextos para promover a discriminação. A posição adotada em 1974 com tendência restritiva posteriormente resultou em uma alteração da legislação, imposta pelo Civil Rights Act de 1991, o qual veio a adicionar o item “k” ao artigo 703 do Civil Rights Act de 1964, adotando critérios para inversão do ônus da prova.

A Diretiva 97/80# da União Européia, de 15 de dezembro de 1997, tem um papel fundamental ao prever expressamente a inversão do ônus da prova nos casos de discriminação. Essa norma comunitária justifica sua proposição com base no artigo 16 da Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, onde está previsto que os Estados-membros devem intensificar, onde for necessário, as ações destinadas a garantir a aplicação do princípio da igualdade entre homens e mulheres. Tal Diretiva foi confeccionada por meio de consultas a parceiros sociais comunitários sobre a matéria do ônus da prova em casos de discriminação, visando a aplicação efetiva do princípio da igualdade de tratamento. A norma expressamente reconhece, nas suas considerações, a dificuldade de produção de provas por parte de quem alega a quebra do princípio da igualdade, dificuldade já reconhecida pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Européias em casos de presumível discriminação. A efetividade do princípio da igualdade estabelece que o ônus da prova cabe à parte demandada, principalmente nos casos de discriminação indireta.

A jurisprudência do Tribunal de Justiça já se havia inclinado claramente neste sentido em 1988, em especial no caso Handels-og Kontorfunktionaerernes Forbund i Danmark contra Dansk Arbejdgiverforening# onde a Corte reconheceu que havia nos autos daquele processo provas estatísticas que as empregadas recebiam menos que os empregados, e a empresa não logrou demonstrar o motivo desta disparidade. A decisão determinou que se o sistema da empresa não era transparente e se uma queixa possui indícios razoáveis de discriminação salarial, ainda que não concludentes, o ônus da prova é do empregador para refutar as provas apresentadas e demonstrar que seu sistema é neutro em termos de disparidades por razões de sexo#. A Diretiva 97/80 formula o princípio da inversão do ônus da prova desde que o demandante estabeleça fatos que permitam presumir a existência de uma discriminação direta ou indireta. O ônus não é automaticamente invertido, mas tem como pressuposto a presença de indícios de discriminação cometidos por determinado empregador. É um princípio assemelhado aos fundamentos da decisão do caso Green pela Suprema Corte norte-americana.

A mencionada Diretiva estabelece dois modos para a inversão do ônus da prova. Adotando-se a terminologia européia de discriminações, no caso da discriminação direta, será suficiente ao demandante estabelecer que a consideração do motivo proibido é plausível e razoavelmente verossímil, de forma suficiente a possibilitar a crença do julgador em suas alegações, e daí transferir o ônus da prova para o empregador. No caso da discriminação por efeito adverso (o que a norma considera como discriminação indireta), o encargo do demandante é bem mais difícil, pois caberá a ele demonstrar que uma determinada medida prejudicial atinja uma proporção muito mais elevada de pessoas de determinado sexo em relação a outro. Será necessária uma prova de que um grupo, e não somente determinado indivíduo, está sendo desproporcionalmente atingido comparativamente a outro, e as situações pessoais da vítima devem se ajustar a situações comuns do referido grupo. Nesta relação, deverá o autor provar sua inclusão em um grupo desproporcionalmente atingido, bem como provar o efeito danoso desproporcional de um grupo e de outro, para que consiga obter a inversão do ônus da prova. Como é possível verificar, tais provas são muito mais difíceis que a prova individual do efeito perverso.

É perfeitamente possível no direito processual trabalhista brasileiro a adoção da inversão do ônus da prova quando existente algum indício da possibilidade de uma situação discriminatória, exigindo-se do empregador a demonstração de motivos razoáveis e proporcionais para que justifique a disparidade verificada.

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