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Os salários dos juízes portugueses

A condição financeira dos tribunais e dos juízes constitui uma questão pública muito relevante.

A condição financeira dos tribunais e dos juízes constitui uma questão pública muito relevante.

Por Nuno Coelho
Juiz no Tribunal da Relação de Lisboa e vice-presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses

Historicamente, surge como preocupação sempre que se estabelece a devida relação entre os tribunais e os demais poderes do Estado. Qualquer democracia constitucional avançada tem regras claras que colocam os juízes e os tribunais a salvo de eventuais ameaças dos outros poderes, em especial o executivo. Nalguns países pelas Constituições, noutros países através de leis com um valor reforçado.

O Conselho da Europa e a própria União Europeia reflectem nas suas directrizes e recomendações este princípio que se pode chamar de independência financeira dos tribunais e dos juízes.

Quando o poder político se sente questionado pela acção dos tribunais (nas suas mais variadas jurisdições), reage por vezes com a arma dos cortes financeiros e orçamentais. É assunto tratado nos manuais da ciência política e constitucional.

Fará algum sentido obrigar os juízes e os seus representantes a uma defesa do seu estatuto constitucional sempre que se apresentam propostas orçamentais (Orçamentos de Estado anuais e seus rectificativos), parecendo dar razão àqueles que vêem determinadas políticas para os tribunais e os juízes como retaliação a algumas decisões judiciais que atingem interesses ou personalidades de relevância política e partidária? Intencionalmente ou não, esta dimensão da “independência financeira dos juízes” continua a ser ignorada na controvérsia pública sobre o salário dos juízes.

A verdade é que a questão da remuneração dos juízes está ligada ao papel social e político que têm, e à estrutura que assegura a integridade da sua função.

A independência judicial não deve ser entendida como um privilégio dos juízes, mas como um direito pertencente à cidadania e uma garantia universal do correcto funcionamento do Estado constitucional e democrático de direito. Nesse sentido ela pode e deve ser pensada como um factor de superação e de combate às próprias crises políticas e económicas. Como, aliás se tem visto em algumas decisões dos mais altos tribunais, e com certeza se exige que aconteça diariamente em todos os tribunais portugueses.
 
A redução acentuada da remuneração de todos os juízes, o congelamento dos seus rendimentos durante décadas e a depreciação salarial nos primeiros anos das suas carreiras, tem um impacto negativo no estatuto e na qualidade que hoje se exige para os tribunais e a justiça. Os padrões remuneratórios dos juízes devem corresponder a uma função de elevada responsabilidade que se exerce em regime exclusivo, com proibição de levar a cabo qualquer outra actividade remunerada, mesmo ao nível do ensino ou da investigação.

Não está em causa a robustez ética dos juízes portugueses, sobre cuja actuação profissional não há a menor suspeita de corrupção. Os juízes nunca venderão a sua independência e imparcialidade. Mas é essencial evitar que condicionamentos financeiros – porventura afectando a vida pessoal e familiar – perturbem a serenidade e o equilíbrio de quem se exige que julgue a vida dos seus semelhantes, nas suas diversas dimensões sociais e humanas (e também económicas) com justiça e equidade.

Quem tem a função última de garantir os direitos e os deveres dos cidadãos, de zelar pela reintegração da legalidade, de sancionar os ilícitos de vária ordem, de pacificar e resolver os litígios, de defender os princípios e as regras constitucionais e até defender o cidadão da actuação do Estado, num estatuto essencial de imparcialidade e de autonomia, de independência, tem de estar resguardado do ponto de vista da sua sustentação financeira.

Quem serve como garantia do direito, em democracia, não pode deixar de ser também garantido pelo direito.

No fundo, trata-se de salvaguardar aquilo que o Estado de direito tem de mais valioso: a existência de tribunais e de juízes que possam exercer o seu poder de forma imparcial, qualificada e livre.

Fonte: Jornal de Negócios (Portugal)

Data: 06/04/2014

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