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Artigo em ZH: Tu, por Aline Doral Stefani Fagundes*

Chamar de tu perdeu completamente o estrelato. Até pouco tempo atrás, seria uma descortesia descomunal entrar em uma audiência e dirigir-se dessa forma ao juiz. Hoje, não. Todo mundo é tu: os pais dos amigos; a senhora de cabelos brancos que mal conhecemos; o professor; até o diretor da escola. Ora, o juiz, então, mais tu impossível. Mas por que a reclamação? Tu é só a segunda pessoa do singular. Já fui chamada de cara e de meu em audiência. Tentei disfarçar o impacto, mas, já que era para patifar, não poderia ser algo mais feminino, como bem, amor ou flor? Pois, então. É a quebra do paradigma. O juiz não assusta mais. Ou melhor, assusta, sim. Mas não por impor respeito, e sim porque está surtado.

Outro dia, ouvi o que até agora não sei se me ofendo ou se agradeço. Perguntada sobre o que eu fazia, respondi ser juíza do trabalho. A pessoa ficou surpresa: “Sério? Nem parece. A senhora é tão legal!”. Juro que é verdade. Agora não digo mais. Quando perguntam, digo que sou servidora pública, que trabalho na Justiça do Trabalho ou, como disse uma juíza muito mais esperta do que eu, que trabalho com pilhas. Também verdade. A resposta e as pilhas. Acho que é por isso que estamos surtados. São pilhas e mais pilhas. Até aí, nada de mais. Todo mundo trabalha bastante, e a maioria nem recebe bem por isso. Então, abro o jornal, acesso redes sociais, entro em conversas, e só o que ouço sobre os juízes são os tais privilégios. Procuro ouvir atentamente para entender onde eu estava quando ofereceram os meus e não os peguei. Meu salário é público, recolho imposto de renda sobre a totalidade dos meus rendimentos, não tenho motorista, não recebo horas extras ou Fundo de Garantia, não tenho jornada máxima, e os meus direitos e deveres estão previstos na Lei Orgânica da Magistratura, que não é nada mais impressionante do que uma norma coletiva bem negociada ou um regulamento de uma empresa de bom porte.

Juiz tem mais é que ser “tu” mesmo. Juiz não é “senhor” de nada, nem do seu sigilo bancário. Quase apanhei do meu pai quando, criança e ingênua, perguntei a um amigo dele quanto ele ganhava. Hoje, o meu salário está estampado na internet, para quem quiser ver e avaliar se é compatível com os meus “luxuosos” sinais de riqueza. Criei algumas desculpas genéricas para o caso de alguém me pedir dinheiro emprestado, porque, se disser que não tenho, corro o risco de ouvir “Como assim???”. Estou vendo a hora em que vou entrar em uma loja, perguntar o preço de um produto e a vendedora vai responder “Nada que o seu salário não possa pagar”. Profissão antipática! Desculpa, estou azeda! Mas é! Não sou o Joãozinho do passo certo, no entanto vivo de dizer o que está certo ou errado na postura dos outros. Cem por cento de chance de desagradar. Se a sentença é boa para um, é porque foi ruim para o outro. E ainda querem acabar com a vitaliciedade, garantia que é muito mais do cidadão do que minha. Sem a vitaliciedade, e se o desagradado for um poderoso, o juiz – que ainda é só vitalício, e não imortal – vai virar pescador na Praia da Pinheira. Tempos difíceis. Vamos ver onde isso vai chegar.

*Juíza do Trabalho Substituta

(Texto publicado no jornal Zero Hora em 1º/8/2013).

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