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O Ministro no País das Maravilhas ou A Fantasia do Brasil sem Justiça do Trabalho

Rodrigo Trindade*

No final do século XIX, Freud reviu seu conceito de fantasia. Nos primeiros estudos, tinha uma pegada mais sexual: a partir de experiências infantis, percebeu que adultos deixam-se seduzir e construir certos comportamentos tendentes a parafilias. Mas em 1897, ele passou a designar por “fantasia” toda a vida imaginária do vivente, a maneira como representamos para nós mesmos nossas histórias e origens. Falou, então, de “fantasia originária”.

Como toda ciência e seu instrumento de aplicação, Direito do Trabalho e Justiça do Trabalho carregam suas fantasias – originárias e recentes. Algumas delas foram repetidas nos últimos dias. 

Cláudio Humberto, o ex porta-voz do então presidente Fernando Collor (baita currículo!) – e ainda importante articulista político em Brasília – escreveu texto jornalístico sob o título “Indústria da Esperteza”. Disse que a Justiça do Trabalho alimenta “indústria” de 3 milhões de ações, contra 125 mil ajuizamentos nos EUA. 

Já o ainda ministro do STF Gilmar Mendes, falando em evento empresarial, comparou o TST a um tribunal soviético e disse que a Especializada tem “concepção de má vontade com o capital”. Foi além, referindo “eu tenho a impressão de que houve aqui uma radicalização da jurisprudência no sentido de uma hiper proteção do trabalhador”

Cláudio Humberto e Gilmar Mendes parecem escolher três alvos para suas pedradas: “esperteza” (de trabalhadores e/ou advogados?), “proteção desmedida” do Direito do Trabalho e “má vontade” dos juízes para com empresários. 

Em psicanálise, levantamento de fatos são importantes para reconhecimento das fantasias.

Não há dúvidas que 3 milhões de ações trabalhistas arrepiam cabelos, pelos e outros fios. Hora da mea culpa: somos um país de litigantes, temos graves dificuldades de buscar soluções negociadas e construímos lamentável cultura de não aceitar observância voluntária da lei. Sem canetaço de juiz, simplesmente não vale a pena cumprir. Isso sem contar na desproporcional população advocatícia. São mais de 853 mil estudantes de Direito, espalhados por 1.172 faculdades. Não é à toa que o Brasil já conta com a 3ª maior população de advogados do planeta.

Os EUA possuem concepções completamente diferentes e comparações brutas não merecem muitos toques de teclado. Além de mínimo de Direto do Trabalho legislado, os custos dos processos norte-americanos são quase proibitivos, fazendo com que mais de 90% das contendas se resolvam por outras vias. Mas, o mais importante, há sérios fatores culturais e jurídicos que induzem cumprimento voluntário. Esse último bem poderia ser para terras tupiniquins exportado sem imposto.

Mas excesso de ações não é karma exclusivo de relações trabalhistas. Ampliando a visão para todo o Judiciário, vemos que a Justiça do Trabalho recebe 13,8% dos casos novos por ano e isso é muito inferior à Justiça Estadual (69,7%) e ainda menos que a Federal (14%), que tem praticamente um único réu, a União. E isso não é estatística pessoal, está lá no relatório do CNJ, órgão integrado pelo ministro.

A ideia de “indústria da ação trabalhista” é fantasia nova. Parece partir da suposição de regra em lides inventadas, de pretensões absurdas. Não há dúvidas que há excessos, com pedidos (sejamos elegantes) pitorescos e exagerados. Pode ser resultado do excesso de competição entre advogados, da necessidade de aumentar a “lucratividade do processo” ou da quase ausência de mecanismos de punição ao abuso de petição. Mas está longe de ser regra. Dados do Conselho Superior da Justiça do Trabalho mostram que mais de 46% das ações trabalhistas são para cobrar verbas rescisórias. Não tratam de construções inusitadas do tipo “dano social em ricochete”, mas de simples parcelas salariais de quem trabalhou o mês, no final ganhou um contra-cheque em branco e o recado de “vai procurar os teus direitos”. 

A ideia da atuação equivocada do Judiciário Trabalhista, aplicando excesso de proteção não é nova; essa, sim, parece ser “fantasia infantil”. Direito do Trabalho e Justiça do Trabalho são fatores de opção civilizatória, atuam no equilíbrio das relações sociais e impedem a emergência de conflitos abertos entre empregados e empregadores. Isso sem falar na importância que têm por manter o mercado equilibrado pela distribuição de renda e suprido por seres capazes de consumir o que produzem. Podemos pensar em passar o “delete” em tudo isso, mas a barbárie pode não ser a melhor opção para quem não faz estoque de víveres.

Não canso de me admirar com generosidade dos litros de tinta gastos em defender a restrição de atuação da Justiça do Trabalho e o modéstia silenciosa sobre medidas para fazer cumprir o Direito do Trabalho. 

A sugestão de que proteção trabalhista possa impedir o crescimento é algo que, simplesmente não se sustenta, seja qual for a origem da fantasia. Estudos da Organização Internacional do Trabalho – OIT e Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE demonstram que não há qualquer correspondência determinante entre proteção trabalhista e geração de empregos. E muito menos é a flexibilização que incentiva criação de novos postos de trabalho. Ao contrário, rotatividade e excesso de jornada são os principais fatores de desequilíbrio e constituem-se nas elementares práticas de reprovação pelo Judiciário Trabalhista.

As fantasias são muitas, mas não passam pelo aclaramento da consciência.

Desde a escravidão, direitos dos trabalhadores sempre estiveram no centro das crises políticas. Foram determinantes para mobilizações, reações, avanços e até golpes. Somos uma sociedade de trabalhadores, nos identificamos em pertencimentos a partir de nossos ofícios e não há qualquer problema em pautar regramento do trabalho como grande questão nacional. Mas o façamos com sinceridade. Se Freud reviu seu conceito, também podemos optar pelo caminho do esclarecimento e libertação de fantasias.

* Presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região – AMATRA4

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